Afonso Romano de Santanna como sempre brilhando nas tuas crônicas. Esta deste domingo (24/01/2010) de maneira magistral compara o terremoto do Haiti com os terremotos de nossa vida de maneira simples e poética. Se interessar perca um tempinho e leia, pois vale a pena.
Roberta Carrilho
Domingo, 24 de janeiro de 2010.
Desabam prédios no Centro de Porto Príncipe num estrondoso terremoto. Racham pias, os espelhos se partem, água escura irrompe das paredes e tudo começa a afundar. Na rua, os carros balançam igual gelatina, começa uma chuva apocalíptica de vidros e depois tijolos, ferro e pó, até que a morte se esconda sob os escombros. A todo instante nos chegam notícias de que bebês sobreviveram seis dias sob os destroços, casais resistiram amando sob os entulhos, e outros, apesar de desabarem inteiramente com os edifícios, chegaram ao solo intactos.
Então é lícito pensar que, embora muitos pereçam, a ruína nos dá lições de vida. Pois desabam os casamentos, os negócios, a saúde e os regimes, mas não se sabe onde nem por que milagre surgem forças propiciando o resgate e nos livrando do total aniquilamento.
Todos já estivemos e estaremos em algum terremoto. Um terremoto é onde a paisagem nos trai. Um terremoto é quando se quebrou a solidariedade entre o seu ponto de vista e as coisas. Um terremoto não é só quando o caos demoniacamente toma conta do cosmos. Um terremoto, eu lhes digo o que é: a hora da traição da natureza. Ou da traição dos homens, se quiserem. Um terremoto, minha amiga, é como agora, quando você está se separando. Você me diz de soslaio, querendo-não-querendo conversar, você vai me dizendo que seu casamento está desmoronando. Você está embaixo da pele, com a voz meio sepultada lançando um grito de socorro, e aqui, com a equipe de salvamento, posso lhe lançar a frase: a ruína nos dá lições de vida.
Terremoto é a hora da traição do amigo, que, invejoso, concorre como inimigo, lança fel onde a amizade era mel e envenena a rima de seus dias sendo Caim em vez de Abel. Por isso, há que afixar conselhos sobre a hora do terremoto. Como nos abrigos antiatômicos, nas indústrias do perigo, há que adiantar as medidas a serem tomadas quando o terremoto vier. Daí o primeiro conselho é: não entre em pânico acima do tolerável. Lembre-se de que todo terremoto é passageiro. Porque este é o sortilégio dos terremotos: nenhum terremoto é permanente, embora muitos e tanta coisa nele pereçam. Mesmo os mais profundos e autênticos cataclismos não duram mais que pouquíssimos, embora diabólicos, segundos.
Outro conselho: rápido e fulminante, nada garante que ele não se repita. Há que estar atento também para o fato de que esse movimento é interior e exterior. O que desabou por cima não é tudo. É sintoma apenas do que se moveu por baixo. Um terremoto autêntico vem mesmo de camadas profundas, e a superfície só vai se acalmar quando as camadas geológicas lá dentro se ajeitarem de novo.
Sobretudo, depois do terremoto, há que aprender com as ruínas. Os engenheiros que me perdoem, mas a ruína é fundamental. É a hora do retorno. E, se vocês me permitissem discretamente citar Heidegger, com ele eu diria que a ruína só é negativa para aquele que não entende a necessidade de demolição. Pois a tarefa do indivíduo é refazer-se a partir de suas ruínas. Temos mais é que catar os cacos do caos, catar os cacos da casa, catar os cacos do país. Depois da demolição, poderemos nos erguer na luminosidade do ser. Ruína, nesse sentido, não é decadência. Ao contrário: é a hipótese de soerguimento.
As ruínas do presente nos ensinam que um terremoto é quando não há mais o centro das coisas. E, no Haiti, foi o centro, o centro do centro – a capital, que foi arrasada.
Amigo, amiga, terremotos, dentro e fora de nós, hão de sempre ocorrer. A ruína, além da morte, nos dá lições de vida.
Conselhos durante um terremoto. Os engenheiros que me perdoem, mas a ruína é fundamental. É a hora do retorno.
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