quarta-feira, 14 de março de 2018

CANÇÃO DAS MULHERES por Lya Luft



Muito eu esta crônica da Lya Luft 
uma belíssima reflexão feminina 
Roberta Carrilho



Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.

Que o outro note quando preciso de silencio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.

Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.

Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.

Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dói a ideia da perda, e ouse ficar comigo um pouco mais – em lugar de voltar logo à sua vida, indo porque lá está a sua verdade mas talvez seu medo ou sua culpa.

Que se começo a chorar sem motivo depois de um dia daqueles, o outro não desconfie logo que é culpa dele, ou que não o amo mais.

Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo “Olha que estou tendo muita paciência com você!”

Que se me entusiasmo por alguma coisa o outro não a diminua, nem me chame de ingênua, nem queira fechar essa porta necessária que se abre para mim, por mais tola que lhe pareça.

Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.

Que quando levanto de madrugada e ando pela casa, o outro não venha logo atrás de mim reclamando: “Mas que chateação essa sua mania, volta pra cama!”

Que se eu peço um segundo drinque no restaurante o outro não comente logo: “Pôxa, mais um?”

Que se eu eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire.

Que o outro – filho, amigo, amante, marido – não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.

– crônica de Lya Luft, do livro ‘Pensar é transgredir’. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004.


sexta-feira, 9 de março de 2018

ERÓTICA É A ALMA por Adélia Prado




Todos vamos envelhecer... Querendo ou não, iremos todos envelhecer. As pernas irão pesar, a coluna doer, o colesterol aumentar. A imagem no espelho irá se alterar gradativamente e perderemos estatura, lábios e cabelos. A boa notícia é que a alma pode permanecer com o humor dos dez, o viço dos vinte e o erotismo dos trinta anos. 

O segredo não é reformar por fora. É, acima de tudo, renovar a mobília interior: tirar o pó, dar brilho, trocar o estofado, abrir as janelas, arejar o ambiente. Porque o tempo, invariavelmente, irá corroer o exterior. E, quando ocorrer, o alicerce precisa estar forte para suportar. 

Erótica é a alma que se diverte, que se perdoa, que ri de si mesma e faz as pazes com sua história. Que usa a espontaneidade pra ser sensual, que se despe de preconceitos, intolerâncias, desafetos. 

Erótica é a alma que aceita a passagem do tempo com leveza e conserva o bom humor apesar dos vincos em torno dos olhos e o código de barras acima dos lábios. 

Erótica é a alma que não esconde seus defeitos, que não se culpa pela passagem do tempo. 

Erótica é a alma que aceita suas dores, atravessa seu deserto e ama sem pudores. 

Aprenda: bisturi algum vai dar conta do buraco de uma alma negligenciada anos a fio.


Texto do livro "Erótica é a Alma". Adélia Prado