domingo, 5 de maio de 2019

BEM-VINDOS A 1964 (Divinópolis/MG) por Dr. Anselmo Alves de Carvalho Junior




DIVINÓPOLIS - policiais militares invadem bar da Val na rua São Paulo com truculência, abusam do poder de autoridade, tentam quebrar braço de advogado sem qualquer constrangimento. Infelizmente acabou o limite da observância da lei nessa era negra bolsonarista. Lamentável esses abusos cada vez mais frequentes pelos militares que agora se acham intocáveis pela justiça e lei
Roberta Carrilho 



O motivo desta manifestação é simples: A Polícia me prendeu, sem qualquer crime ou razão, para “averiguação”. E não, isto não é um fato fictício.

Explico. Ontem, 03/05/19, sexta-feira, estava com a Gabriela Pedrosa e alguns amigos no “Bar da Val”, na região central de Divinópolis. Se trata de um estabelecimento completamente fechado por grades nas laterais e na frente, sem saída por trás e com uma única porta. Haviam muitas pessoas no local, pacificamente, algumas bebendo, outras não, sem qualquer agitação, sem som, sem qualquer confusão.

Por volta das 23h, 4 viaturas da PMMG pararam abruptamente na frente do estabelecimento, momento em que aproximadamente 6 policiais desembarcaram e, com toda agressividade possível, começaram a dar uma “batida” na frente da única porta.

Durante a ação, dois policiais, sem qualquer motivo, sem resistência de qualquer dos presentes e sem qualquer risco, sacaram as armas em direção aos clientes do bar. Neste momento, eu que sou advogado (OAB/MG 182.414) e estava em pé próximo a porta do bar, questionei a um dos referidos PM sobre o porque ele estava com a arma sacada, colocando em risco todos os presentes. Me dirigi a outro Policial e o pedi que acalmasse aquele que estava mais exaltado, mas fui ignorado.

Logo após, umas 7 pessoas adentraram o bar, e as acompanhei. Permaneci sentado na primeira mesa ao lado da porta, onde o pessoal que veio comigo estava, para aguardar. Então, 3 policiais entraram no estabelecimento e prontamente começaram a me agredir sem motivo. Um deles, chamado Figueiredo, torceu meu braço esquerdo pra trás e tentou quebrá-lo. Logo após, um policial me agarrou meu braço direito, e um foi por trás e me algemou o mais forte possível, o que acabou deixando hematomas nos meus pulsos. Isso sem que eu tivesse apresentado qualquer resistência, absolutamente nenhuma, e sem que houvesse qualquer risco de fuga, uma vez que estava sentado na mesa de um bar completamente fechado, com uma única porta onde estavam os demais policiais.

Mesmo após algemado, e ainda sem oferecer qualquer resistência, se recusaram a dizer o motivo pelo qual estava sendo preso, se recusaram a se identificar, não permitiram que eu comunicasse a prisão a ninguém e não permitiram sequer que eu pegasse meus documentos pessoais. Um deles ainda afirmou “somos policiais, nós vamos fazer o que quisermos”. Minha sorte foi que não estava lá sozinho, e pessoal avisou meus pais.

Na sequência, o PM Figueiredo novamente tentou quebrar meu braço, empurrando meu corpo pra frente e torcendo o braço pra trás, motivo pelo qual ainda estou com bastante dor no ombro. Outro policial, de nome Sgt. Maia, me arrastou para a viatura e abriu a “cela” do porta-malas. Me revistaram por duas vezes, levantando camisa, calça, etc., e nada encontraram, como era de se esperar.

Diante de tal situação, eu voluntariamente tentei entrar na “cela”, e quando isso ocorreu, o PM de nome Vidal me empurrou, o que fez com que eu caísse. Já dentro, pedi um momento para colocar minhas pernas pra dentro, e como neste ponto já é de se imaginar, fui ignorado e o policial Figueiredo fechou a tampa do porta-malas sobre minhas canelas até que a porta travasse.

Fui conduzido à delegacia de Polícia Civil. Ao ser puxado para fora do carro, fiz questão de observar e guardar o nome dos policiais que estavam cometendo tal abuso de autoridade, Figueiredo e Maia foram os principais. Ao subir a rampa, o Sgt. Maia me puxou, torceu meus braços que já estavam algemados, apertou meus dedos, empurrou com força minha nuca, e disse: “tá olhando pra mim porque?”. Respondi apenas “estou olhando o nome de vocês”, e ele me disse “você vai ver o que eu vou fazer com você”.

Já dentro da delegacia, sem qualquer motivo que justificasse o que fizeram, os Policiais Militares conversaram entre si e resolveram que iriam registrar a prisão por desobediência, que obviamente não ocorreu. Me colocaram em pé, de frente para uma parede, algemado. Assim que me identificaram e viram que era advogado, retiraram as algemas e não me colocaram na cela, me mandaram sentar. Como um passe de mágica, passaram a ter educação, a dizer por favor e obrigado.

Meu pai, que é Juiz, chegou acompanhado do advogado Dr. Halssil. Ao vê-los, por um “aparente milagre”, todos os policiais se tornaram dóceis e amáveis, agindo agora com educação e extrema cortesia, tanto com eles quanto comigo.

Como sou advogado, há por lei a necessidade da presença de um representante da Ordem, que foi chamado pela minha família e não pela Polícia. Ao chegar, o representante se dirigiu a mim, momento em que o PM Figueiredo, o mais agressivo de todos, pediu, como um expert em educação, um cartão do representante para registrar o nome do mesmo. Ao receber o cartão, disse o seguinte: “um prazer imenso conhecer o senhor doutor, tenho que devolver ou posso guardar pra mim?”. O representante disse que poderia ficar, e eu disse em voz alta: “Agora além de educado ele virou puxa-saco”.

Minutos depois, os Policias devolveram meus pertences e após as formalidades, fui liberado sem sequer ser ouvido. Ao meu pai, o mesmo policial puxa-saco disse: “foi um prazer conhecer o senhor dr.”. Assinei somente um Termo de Compromisso de Comparecimento.

Poderia não expor tal fato aqui, mas diante do momento que vivemos, acho extremamente importante que eu o faça. Porque eu posso, não porque eu seja melhor que qualquer outra pessoa, não sou, mas por causa das minhas condições pessoais. Porque sou branco, de classe média alta, advogado e sou filho de um juiz. Porque a educação dos policiais não pode aparecer só para aqueles que podem fazer algo. Apenas imaginem se fosse pobre, negro e favelado. Se não tivesse ninguém olhando por mim. O que poderia ter acontecido? Talvez 80 tiros, como acabamos de ver.

Obviamente, se o motivo fosse uma suposta desobediência, deveriam ter dado voz de prisão para todos, mas vieram atrás de mim apenas. Porque eu os questionei na frente de outras pessoas. Porque quiseram mostrar força, queriam mostrar o que aconteceria se alguém os questionasse. Queriam mostrar que eram poderosos.

Felizmente, o estabelecimento onde ocorreram os fatos conta com câmeras de segurança externas e aparentemente internas também, então toda ação foi gravada. Já requisitei as filmagens à dona, que gentilmente se disponibilizou a cedê-las. Assim que as receber, vou colocar o vídeo no YouTube e atualizar esta publicação com o link.

Hoje irei comparecer a Policia Civil para dar notícia do fato, e na segunda-feira ao Ministério Público, para que os policias que cometeram o abuso de autoridade sejam responsabilizados criminalmente.

Além disto, amparado na Lei, acionarei civilmente os responsáveis, para que sejam obrigados a pagar uma indenização. Representarei, também, perante a Corregedoria de Polícia. Por fim, vou requisitar uma manifestação oficial da OAB.

Vou atrás dos responsáveis. Eles não podem achar que podem fazer este tipo de coisa e ficar tudo bem, sem consequências. Porque quanto mais fizerem isto e nos calarmos, mais eles irão se sentir legitimados a fazer este tipo de coisa. Não dá pra deixar passar.

Atônito e com medo, fui injustamente agredido e humilhado perante todos os presentes, por aqueles que deveriam estar ali para me proteger e proteger os demais. Tive minha dignidade, base da democracia, completamente violada sem qualquer constrangimento por parte dos responsáveis. Ou melhor, por bandidos travestidos de policiais.

Esta é a nova orientação da polícia sob o governo Bolsonaro. Cuidem-se, a repressão é real.

Peço a todos que puderem, que compartilhem este relato. Precisamos fazer algo antes que seja tarde demais.

Por fim, se fosse possível voltar no tempo até o início de tudo, de cabeça fria digo que não mudaria nada. Não podemos nos calar.



quinta-feira, 2 de maio de 2019

PODE PENSAR QUE ADVOGADOS SÃO VIGARISTAS E JUÍZES NÃO PRESTAM, MAS...



Fantástico Professor Lenio Streck
Sou leitora assídua de seus textos e acompanho na TV Justiça quando posso. Uma mente brilhante na minha área jurídica. 
Roberta Carrilho 


Lenio Luiz Streck 

Começo no ponto, na veia: acreditar no Estado de Direito, dizia Lord Bingham, não exige que amemos o Direito de nosso país. Você pode conservar seus preconceitos e continuar achando que advogados são vigaristas e que juízes não prestam.

Mas, complementa o nosso famoso Lord, o que você não deve esquecer é das características de um regime que não tem instituições que garantam o Estado de Direito: censura, discriminação, desaparecimentos repentinos, aquela batida na porta no meio da noite, julgamentos de fachada e a portas fechadas, tratamento degradante a prisioneiros, confissões sob tortura etc.

Vivemos tempos em que precisamos reafirmar o óbvio. É a velha tese de Orwell: em tempos de abismo, temos a tarefa de reafirmar o óbvio.

Temos que reafirmar que verdades existem, que aplicar a lei não é feio, que nem tudo é uma questão de opinião. Que a Terra é redonda, que vacinas funcionam, que o aquecimento global existe. Que Kelsen não é um exegetista. Que Newton, afinal, vejam só, não era um burro.

Pois é. Tempos de reafirmar uma velha obviedade: a democracia é o pior de todos os regimes... exceto todos os outros. E ela não é garantida. Ela veio, mas foi a duras penas. E é sobre essa trivialidade que trato hoje: o valor da democracia e das instituições que a tornam possível.

É uma relação circular. Só há democracia quando há critérios; só há critérios quando há Direito; só há Direito quando há instituições fortes; só há instituições fortes quando há respeito aos critérios que materializam a democracia.

É óbvio. Mas precisamos reafirmar o óbvio. Então, na Senso Incomum de hoje, recorro ao velho Senso Comum de Tom Paine: se, nas tiranias, o Rei é a lei, nos países livres, a lei é o Rei.

Recorro a John Locke:
 onde termina o Direito, inicia a tirania.

A quem interessa, então, enfraquecer o Direito? 
Por que gente do Direito odeia o Direito? 

Encontrei, por aí, nesta semana, um estudante de Direito, com mais de 80 anos, quem, em um trecho de 50 metros que o deixei andar comigo, ficou falando horrores da Constituição e das garantias processuais. Disse-lhe: saia logo dessa. Vai fazer outro curso (entendem o porquê de eu dizer “deixei andar comigo”?). 

Por que foi escolher justamente “Direito”? Pobre do “estudante”. Uma das frases dele foi: bandido bom é bandido morto (tenho testemunha da conversa). Só no Direito para se formar. Duvido que se formasse em Medicina ou Veterinária ou em Física ou em Filosofia (registro: disse odiar Filosofia). Aliás, hoje em dia, para chumbar na faculdade de Direito, o aluno precisa de pistolão...

Não surpreende que a cruzada anti-institucional — e, porque anti-institucional, antidemocrática — venha daqueles que parecem mais dispostos a prescindir da democracia.

É por isso, meus caros, que tanto me preocupa a naturalização de um discurso que, abertamente, brinca com a possibilidade de mandar fechar uma suprema corte (aliás, o estudante esse também quer fechar o STF).

Preocupa-me ver elogios efusivos a regimes como os da Hungria, que eliminou um dos mais fortes obstáculos à tirania: um Judiciário independente.

Para onde estamos indo? Regredimos?
Vejam, não estou dizendo que as instituições não erram. Eu concordo com Darby Shaw (Julia Roberts) em The Pelican Brief. A personagem, estudante de Direito, diz que, em Hardwick v. Bowers, a Suprema Corte dos EUA contrariou a principiologia constitucional ao reafirmar a constitucionalidade de uma lei que criminalizava a sodomia. 

Quando seu professor pergunta por que, então, a decisão foi aquela, a srta. Shaw responde: “Because they’re wrong”. Porque a Suprema Corte errou. Simples assim (eis o meu “Fator Julia Roberts”).

Concordo com a srta. Shaw. O Judiciário erra. Bastante. Todavia, disso não se segue que o cenário será melhor sem as instituições que, bem ou mal, garantem nosso ambiente democrático. Ou seja, não dá para violar a lei de Hume: de um é não se tira um “deve”.

Citei Orwell e Churchill, citei John Locke e Tom Paine. Recorro a mais um inglês: Tom Bingham, que falou como poucos sobre o Estado de Direito.

Repito-o, sem receio de chatear:

acreditar no Estado de Direito não exige que amemos o direito de nosso país. Você pode conservar seus preconceitos, e continuar achando que advogados são vigaristas e que juízes não prestam. Mas que você não perca de vista, não se esqueça das características de um regime que não tem instituições que garantam o Estado de Direito...!

Esse é o ponto. Quando você estiver prestes a ir às redes sociais, nessa neocaverna, tapado de raiva, para subir a hashtag #UmSoldadoEUmCabo, pense bem. Estamos mesmo dispostos a abrir mão de nossas instituições?

Há uma série de objeções que podem ser feitas a elas. Objeções válidas. Mas, tomadas uma a uma, vê-se claramente que nenhuma leva à conclusão de que delas não precisamos.

Eu exijo de nossas instituições uma atuação dentro dos parâmetros e limites que a função impõe.

Exijo responsabilidade política.

Exijo obediência a critérios.

Exijo prognose.

Exijo coerência e integridade.

Exijo fairness.

Exijo o devido ajuste institucional dos princípios que sustentamos enquanto comunidade.

E esse é o maior elogio que posso fazer às nossas instituições. Se exijo que elas estejam à altura de nossos tempos difíceis, é porque sei que elas são capazes de fazê-lo.

É porque sei, afinal, que elas são imprescindíveis.

Não nos esqueçamos dessa trivialidade.


Fonte: 
 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 2 de maio de 2019, 8h00