terça-feira, 11 de outubro de 2011

PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst

Por mim e pela minha filha, Maria Eduarda Carrilho
Roberta Carrilho



Quando pensamos em perda, pensamos na morte das pessoas que amamos. Mas a perda é muito mais abrangente em nossa vida. Pois perdemos, não só pela morte, mas também por abandonar e ser abandonado, por mudar e deixar coisas para trás e seguir nosso caminho. E nossas perdas incluem não apenas separações e partidas dos que amamos, mas também a perda consciente ou inconsciente de sonhos românticos, expectativas impossíveis, ilusões de liberdade e poder, ilusões de segurança – e a perda do nosso próprio eu jovem, ou eu se julgava para sempre imune às rugas, invulnerável e imortal. Um tanto mais velha, examinei essas perdas. 

Essas perdas de uma vida inteira. 

Essas perdas necessárias. 

As perdas que enfrentamos quando nos vemos face a face com o fato do qual não podemos fugir... que minhas filhas vão me deixar, e que eu vou deixa-las; que o amor das minhas filhas jamais será só meu; que as dores que nos machucam nem sempre desapareceram com um beijo; que estamos no mundo essencialmente por nossa conta; que teremos de aceitar – nos outros e em nós mesmos – um misto de amor e ódio, de bem e de mal; que, por mais sábia, bela e encantadora que seja, nenhuma garota pode se casar com o pai quando crescer; que nossas opções são limitadas pela anatomia e pela culpa; que há falhas em qualquer relacionamento humano; que nosso status neste planeta é implacavelmente efêmero; e que somos completamente incapazes de oferecer a nós mesmos, ou aos que amamos qualquer forma de proteção – proteção contra o perigo e contra a dor, contra as marcas do tempo, contra a velhice, contra a morte, proteção contra nossas perdas necessárias.

Essas perdas são parte da vida – universais, inevitáveis, inexoráveis. E essas perdas são necessárias porque para crescer temos de perder, abandonar e desistir.

Pois a estrada do desenvolvimento humano é pavimentada com renúncia. Durante toda a vida crescemos desistindo. Abrimos mão de alguns dos nossos mais profundos vínculos com outras pessoas. De certas partes muito queridas de nós mesmos. Precisamos enfrentar, nos sonhos que sonhamos, bem como nos nossos relacionamentos íntimos, tudo o que jamais teremos e tudo o que jamais seremos. Investimentos emotivos nos fazem vulneráveis a perdas. E às vezes, por mais inteligente que sejamos, temos de perder.

Perder suga a gente. Em qualquer idade, temos de concordar: perder é difícil e doloroso. Consideremos também o ponto de vista de que só através de nossas perdas nos tornamos seres humanos plenamente desenvolvidos.

Para compreender nossas vidas precisamos compreender como enfrentamos nossas perdas. A ideia de que as pessoas que somos e a vida que vivemos são determinadas, para o melhor e para o pior, pelas nossas experiências de perda. A conscientização ajuda, que reconhecer o que estamos fazendo ajuda, e que a auto-compreensão pode ampliar o campo das nossas escolhas e possibilidades.


Judith Viorst


Judith Viorst. Esta autora e seu livro PERDAS NECESSÁRIAS foram muito significativos para mim principalmente quando passei por num momento de perdas. Eu tinha perdido a presença e convivência com uma pessoa que eu amo com a alma. Sem explicação. Eu não conseguia entender os motivos de toda aquela dor dilacerante rasgando meu ser. Rezava para suportar... e nisto aconteceu que eu encontrei esse livro. E foi assim por acaso que eu conheci o livro: "Perdas Necessárias" - Judith Viorst Foi numa daquelas visitas intermináveis que faço às livrarias. O título me chamou à atenção! Eu pensei racionalmente:- Como uma PERDA pode ser necessária? Resolvi comprá-lo depois de ler a aba e algumas páginas. Durante a leitura comecei a sentir emoções intensas que me perturbavam o íntimo. Chorava, pensava, chorava de novo, não comia, pensava, chorava, não dormia... enfim, estava ao mesmo tempo confusa, receiosa e fascinada. Louco isso, né! Deve ser coisa de mulher como dizem os homens na sua simplicidade incauta. Aí resolvi levar a questão para dentro do consultório. Naquela época e até abril deste ano, eu fazia terapia com a Dra. Claudia Rabello
Ter encontrado esta Psicóloga com "P" maiúsculo foi um presente de Deus. Ela e eu estabelecemos uma sintonia de confiança desde o princípio, depois fomos evoluindo e mudou para admiração e respeito pelo seu profissionalismo e muito mais pela sua humanidade. Sentimentos raros e preciosos hoje em dia em profissionais liberais que só visam lucro, e não o que se propõem quando estudam ajudar o outro a entender a si mesmo e achar a solução. Não sou contra a pessoa ganhar dinheiro, claro que não! Ela estudou, paga aluguel, etc e tem que ganhar a vida. Mas não pode ser só isso. Ou visando só isso. A minha relação com ela entre paciente e terapeuta se baseou não na troca, escambo monetário. Se baseou em troca de conhecimentos e acolhimentos, posso me atrever a dizer amor. E, sempre que surgia o assunto PERDA eu comentava sobre o livro da Judith Viorst e dizia a ela: - Dra. Claudia eu não consigo avançar... a cada página me traz uma exaustão emocional que chego no meu limite humano. Demorei muitos, muitos e muitos meses até conseguir termina-lo de lelo. Foi o primeiro e o único livro entre muitos que li e leio que eu tive esta sensação. PERDAS NECESSÁRIAS de Judith Viorst. É um finquete dentro de si próprio sem reservas ou boias... tem que nadar e continuar respirando... intenso!
Por fim, decidi a transcrevê-lo no meu blog para que outras pessoas pudessem ter acesso e se fortalecerem com o conteúdo como eu. PERDER MUITAS VEZES É NECESSÁRIO. Segue um trecho do mesmo e abaixo os links de alguns capítulos transcritos do meu blog. Abraços, Roberta Carrilho



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O ALTO PREÇO DA SEPARAÇÃO - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst http://robertacarrilho-div.blogspot.com.br/2011/10/o-alto-preco-da-separacao-perdas.html








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TRIÂNGULOS APAIXONADOS - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst


ANATOMIA E DESTINO - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst


TÃO BOM QUANTO A CULPA - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst




Ainda faltam alguns capítulos... 


O ALTO PREÇO DA SEPARAÇÃO - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst)

Por mim e pela minha filha, Maria Eduarda Carrilho
Roberta Carrilho







O Eu Separado
“Nenhuma dor é tão
mortal quanto a da luta
para sermos nós mesmos".
Ievgêni Vinokurov

O ALTO PREÇO DA SEPARAÇÃO: 

Começamos a vida com uma perda. Somos lançados para fora do útero sem um apartamento, cartão de crédito, um emprego ou um carro. Somos bebês que mamam, choram, se agarram indefesos. Nossa mãe se interpõe entre nós e o mundo, protegendo-nos contra a ansiedade arrasadora. Não teremos nenhuma necessidade maior do que a dos cuidados de nossa mãe.

Bebês precisam de mães. Às vezes, advogados, donas-de-casa, pilotos, escritores e eletricistas também precisam de mães. Nos primeiros anos da nossa vida entramos num processo de desistir de tudo aquilo que devemos abandonar para nos tornamos seres à parte. Mas até aprendermos a tolerar nossa separação física e psicológica, a necessidade da presença de nossa mãe – sua presença literal e real – é absoluta.

Pois é difícil tornar-se um ser à parte, separar-se literalmente e emocionalmente, ser capaz de exteriormente defender-se sozinho e interiormente sentir que se está separado. Temos de suportar perdas, embora possam ser balanceadas pelos ganhos, quando nos afastamos do corpo e do ser de nossa mãe. Mas se nossa mãe nos deixa – quando somos muito novos, despreparados, assustados, desamparados -, o preço desse abandono, o preço dessa perda, o preço dessa separação pode ser alto demais.

Há tempo certo para nos separarmos de nossa mãe.

Porém, a não ser que estejamos preparados para a separação – a não ser que estejamos prontos para deixa-la e ser deixados por ela -, qualquer coisa é melhor do que a separação.

Um garotinho está numa cama de hospital. Assustado e com muita dor. Quarenta por cento do pequeno corpo está coberto de queimaduras. Alguém o encharcou com álcool e então, por incrível que pareça, acendeu um fósforo.

Ele chora pela mãe.

A mãe foi quem o queimou.

Aparentemente, não importa o tipo de mãe que uma criança perde, ou o quanto pode ser perigoso continuar na presença dela. Não importasse ela machuca ou abraça. A separação da mãe é pior do que estar nos braços dela quando as bombas estão explodindo. A separação da mãe é às vezes pior do que ficar com ela quando ela é a própria bomba.

Pois a presença da mãe – da nossa mãe – representa segurança. O primeiro terror que conhecemos é o medo de perdê-la. “Não existe nada semelhante a um bebê”, escreve o pediatra e psicanalista D. W. Winnicott, observando que na verdade os bebês não podem existir sem suas mães. A ansiedade da separação é provocada pela verdade literal de que, sem alguém para tomar conta de nós, morremos.

É claro que o pai pode ser esse alguém. Mas a pessoa encarregada de cuidar do bebê da qual falamos é nossa mãe, de quem podemos suportar qualquer coisa, menos o abandono.

Contudo, somos abandonados pela mãe. Ela nos deixa antes de sermos capazes de entender que vai voltar. Ela nos abandona para trabalhar, para fazer compras, para sair de férias, para ter outro filho – ou simplesmente estando ausente quando precisamos dela. Ela nos abandona para ter uma vida à parte, a sua vida – e precisamos aprender a ter a nossa vida particular também. Mas, nesse ínterim, o que fazemos quando precisamos de nossa mãe – precisamos de nossa mãe! – e ela não está presente?

O que fazemos, sem dúvida, é sobreviver. É claro que sobrevivemos às ausências temporárias. Mas essas ausências nos ensinam um temor que pode nos marcar para toda a vida. E quando nos primeiros anos, especialmente nos seis primeiros anos de vida, somos privados constantemente da mãe que precisamos, e cuja presença desejamos, podemos ser tão prejudicados emocionalmente quanto o garoto encharcado com álcool e queimado. Na verdade, essa privação nos primeiros anos de vida tem sido comparada a uma queimadura ou a um ferimento extenso. A dor é inimaginável. A cicatrização é difícil e lenta. O prejuízo, embora não fatal, pode ser permanente.

Selena enfrenta esse dano todas as manhãs quando os filhos saem para a escola e o marido para o trabalho e, ouvindo a porta do apartamento fechar-se pela última vez; pensa: “Sinto-me sozinha, abandonada, petrificada. Preciso de horas para me refazer. O que acontecerá se eles não voltarem?”

No fim dos anos 30, na Alemanha, quando Selena tinha seis meses, sua mãe começou a luta para sobreviver, saindo todas as manhãs para a fila de alimentos e para vencer a burocracia que cada vez mais dificultava a vida dos judeus. Por uma desesperadora necessidade, Selena ficava sozinha, com uma mamadeira, presa no berço – e, se chorava, suas lágrimas já estavam secas quando, algumas horas depois, a mãe voltava para casa.

Todos os que as conheciam concordavam em dizer que Selena era extremamente boa- uma criança tranquila, sem exigências, de bom gênio, sem problemas, uma criança alegre. E quem a vê agora certamente pensa estar vendo um espírito feliz e brilhante, não marcado por experiências que certamente foram de perda dolorosa.

Mas Selena foi marcada.

Selena é sujeita a crise de depressão. Tem horror ao desconhecido. “Não gosto de aventuras. Não gosto de nada novo”. Diz que suas mais antigas lembranças são de angústia, imaginando o que iria acontecer em seguida. “Tenho medo”, diz ela, “de tudo o que não é familiar para mim.”

Tem medo também de muita responsabilidade: “Gostaria que alguém tomasse conta de mim o tempo todo”. E, embora desempenhando adequadamente o papel de esposa e mãe, arranjou também – no marido, forte e confiável, e em vários amigos mais velhos um substituto do cuidado materno.

As mulheres em geral invejam Selena. Ela é espirituosa, encantadora e cheia de calor humano. Sabe fazer bolos, costurar, gosta de música, gosta de rir. É membro da Phi Beta Kappa – Sociedade de honra nacional, fundada em 1776, cujos membros são escolhidos, como sócios vitalícios, entre os universitários do último ano com destacado desempenho acadêmico – tem dois diplomas de Master, leciona em meio período. E, com seu corpo bem formado, enormes olhos castanhos e bela estrutura facial.

Com a diferença de quem com quase cinquenta anos, Selena continua a ser uma criança, menos uma mulher do que menina. E, finalmente, identificou aquilo que descreve como “algo que me acorda todas as manhãs de minha vida com um gosto horrível na boca e dores na barriga”.

“É zanga”, diz ela, “muita zanga. Acho que me sinto enganada.”

A ideia não é aceitável para Selena. Por que simplesmente não dá graças por estar viv? Observa que seis milhões de judeus morreram, e ela, tudo o que sofreu foi a ausência da mãe. O dano, diz ela, embora permanente, não é fatal.

Somente nas últimas quatro décadas, nos anos seguintes ao nascimento de Selena, começou a ser dada a devida atenção ao alto preço da perda de mãe, ao sofrimento imediato e às consequências futuras das separações, mesmo de curto prazo. A criança, longe da mãe, pode apresentar reações que perduram até muito tempo depois de estarem juntas novamente – problemas de alimentação e de sono, perda do controle da bexiga e dos intestinos, e até diminuição do número de palavras que usa. Além disso, aos seis meses pode se tornar, não apenas tristonha e manhosa, mas gravemente deprimida. E, além disso tudo, a sensação dolorosa conhecida como ansiedade da separação inclui tanto o medo – quando a mãe se ausenta- dos perigos que terá de enfrentar sem ela, quanto o medo – quando estão novamente juntas – de perdê-la outra vez.

Conheço intimamente alguns desses sintomas e alguns desses temores, pois surgiram depois da minha internação no hospital – quando tinha quatro anos – por três meses, praticamente três meses sem mãe, porque naquele tempo os hospitais restringiam rigorosamente as visitas. Anos depois de estar curada, sofri os efeitos da hospitalização. E entre as manifestações da minha ansiedade da separação, surgiu o hábito novo – que continuou até parte da minha adolescência – do sonambulismo.

Um exemplo: numa suave noite de outubro, quando eu tinha seis anos e meus pais – para grande tristeza minha – haviam saído, deixei a cama sem acordar. Fui até a sala, passei pela baby-sister, que estava cochilando, abri a porta e saí de casa. E então, profundamente adormecida, caminhei até a esquina e atravessei o cruzamento movimentado, chegando finalmente ao destino da minha jornada sonâmbula – o corpo de bombeiros.

- O que você quer garotinha? – perguntou um bombeiro atônito mas extremamente carinhoso, procurando não me assustar para que não acordasse.

Contam que, sempre dormindo, eu respondi, alto e bom som, sem hesitar:

- Quero que os bombeiros encontrem minha mamãe.

Uma criança de seis anos pode desejar desesperadamente a presença da mãe.

Uma criança de seis meses pode também desejar desesperadamente a presença da mãe.

Pois, mais ou menos aos seis meses, a criança já pode formar uma imagem mental da mãe ausente. Lembra-se dela e a deseja especificamente, e a ausência provoca sofrimento. E dominada por necessidades insistentes que só a mãe pode satisfazer, sente-se profundamente desamparada e rejeitada. Quanto mais nova a criança, menor é o espaço de tempo – uma vez que esteja já ligada à mãe – em que a ausência é sentida como perda permanente. E embora os cuidados de um substituto a ajudem a tolerar as separações diárias, só aos três anos, gradualmente, começa a compreender que a mãe ausente está viva e intata em outro lugar qualquer – e que vai voltar para ela.

Acontece que a espera pode parecer interminável – pode parecer eterna. 

Pois devemos lembrar que o tempo se acelera com os anos, e que houve uma fase em nossa vida em que medimos o tempo de modo diferente, que então uma hora era um dia, um dia era um mês e um mês era sem dúvida uma eternidade. Não admira que, como crianças, lamentemos a ausência de nossa mãe do mesmo modo que, como adultos, lamentamos nossos mortos. Não admira que, quando uma criança é separada da mãe: “a frustação e a saudade podem leva-la a uma dor desesperada.”

A ausência traz desespero ao coração, e não um aumento do amor.

Na verdade, a ausência produz uma sequência típica de respostas: protesto, desespero, e finalmente alheamento. A criança afastada da mãe e levada para um lugar estranho, sem dúvidas achará a nova vida intolerável. Ela grita, chora, se agita. Protesta porque tem esperança, mas depois de algum tempo, vendo que a mãe não vem... e não vem... o protesto se transforma em desespero, em um estado de ansiedade muda e controlada que pode abrigar um sofrimento indizível. Certas crianças começam apresentar sintomas às vezes imperceptíveis para os adultos a sua volta, pensam que é uma mania, um ‘tic’ da criança, como por exemplo, ficar movimentando freneticamente os braços ou as mãos em um só movimento, com olhos fixos, alheias ao mundo. Entram num mundo inacessível ao adulto, ficam assim se movimentando até exaustão. É uma forma de gastar energia acumulada de sofrimento intenso que ela sente e não sabe explicar. Ela sofre e ninguém percebe que ela está desesperada sentindo falta da mãe. O cheiro, a voz que ela ficou ligada por nove meses. A criança sofre profundamente. É uma dor intensa quando há separação entre ela e sua mãe. Os estímulos externos a fazem esquecer temporariamente esta dor, sorri, brinca, ri, faz gracinhas, mas no íntimo ela quer saber intensamente: onde está a minha mãe?.

Vejamos a descrição feita de Patrick por Anna Freud, três anos e dois meses, que, durante a Segunda Guerra, foi levado para uma creche em Hampstead, Inglaterra e que:

“Garantia a si mesmo e a quem quisesse ouvir, com a maior confiança, que a mãe iria busca-lo, que ela o vestiria com sobretudo e o levaria para casa... Mas tarde aumentou a lista das peças de roupa que a mãe ia vestir nele: ‘Ela vai pôr meu sobretudo e minha calça, ela vai fechar o zíper, e pôr na minha cabeça meu chapéu de duende’. Quando a repetição dessa fórmula ficou monótona e infindável, alguém perguntou se ele não podia parar de dizer sempre a mesma coisa... Ele parou de repetir a fórmula em voz alta, mas o movimento dos seus lábios mostrava que continuava a repeti-la. Ao mesmo tempo, as palavras foram substituídas por gestos que mostravam a posição do chapéu de duende, o sobretudo imaginário sendo vestido, o zíper sendo fechado, etc... Enquanto as outras crianças brincavam com os brinquedos, jogos, faziam música, etc., Patrick, completamente desinteressado, ficava num canto movendo as mãos e os lábios com uma expressão profundamente trágica.”

A necessidade da mãe e tão poderosa que a maioria das crianças desiste do desespero e procura substitutos maternos. Considerando essa necessidade, seria lógico pensar que, quando a mãe perdida finalmente reaparece, a criança vai se atirar alegremente nos seus braços.

Mas não é o que acontece.

Surpreendentemente, a maioria das crianças – especialmente com menos de três anos – pode receber a mãe com frieza, tratando-a com uma atitude distante e apática que quase parece dizer: “Nunca vi esta senhora na minha vida”. É o que chamamos de alheamento – o aprisionamento de todo sentimento, enfrentando a perda de vários modos. Ela castiga a pessoa por ter partido. Serve como disfarce para a raiva, pois o ódio intenso e violento é uma das principais respostas ao abandono. E pode também ser uma defesa – que pode durar horas, dias ou uma vida inteira -, uma defesa contra a agonia de amar outra vez e perder outra vez.

A ausência congela o coração, não aumento o amor.

E se essa ausência for, na verdade, de qualquer papel estável do pai ou da mãe, se a infância é uma série de separações, o que vamos fazer? A psicanalista Selma Fraiberg descreve a atitude de um rapaz de dezesseis anos que entrou com um processo em Alameda County, pedindo indenização de meio milhão de dólares por ter sido colocado em dezesseis casas diferentes, durante seus dezesseis anos. Exatamente qual o dano que ele está alegando? Ele diz que “é como uma cicatriz no cérebro”.

Separações graves no começo da vida deixam cicatrizes emocionais no cérebro porque atacam a conexão humana essencial: o elo mãe-filho que nos ensina que somos dignos de ser amados. O elo mãe-filho que nos ensina a amar. Não podemos nos tornar seres humanos completos – na verdade, é difícil tornar-se um ser humano sem o apoio dessa primeira ligação.

Contudo, algumas argumentam que a necessidade que sentimos de outras pessoas não é um instinto primário, que o amor não passa de um glorioso efeito colateral. O ponto de vista freudiano clássico diz que os bebês encontram, na experiência da alimentação, um alívio para a fome e para outras tensões orais e que, com a repetição do ato de mamar e beber aos goles e da doce saciedade, começam a equacionar satisfação com contato humano. Nos primeiros anos de vida, uma refeição é uma refeição, e gratificação é gratificação. Fontes permutáveis podem satisfazer a todas as necessidades. Com o tempo, a pessoa – a mãe – torna-se tão importante quanto a coisa – a satisfação física. Mas o amor pela mãe começa com o que Anna Freud chama de “amor estomacal”. O amor pela mãe, segundo esta teoria, é um gosto adquirido.

Existe um ponto de vista alternativo, segundo o qual, a necessidade de uma conexão humana é fundamental. Argumenta que somos programados para amar, desde o princípio. “O amor pelos outros aparece”, escreveu o psicoterapeuta Ian Suttie há cinquenta anos, “simultaneamente com o reconhecimento da sua existência”. Em outras palavras, amamos assim que podemos distinguir um “você” separado e um “eu”. O amor é a nossa tentativa de mitigar o terror e o isolamento dessa separação.

O mais conhecido defensor da teoria de que a necessidade da mãe é inata é o psicanalista britânico John Bowlby, o qual diz que os bebês – como os bezerros, os filhotes de patos e de ovelhas e os jovens chimpanzés – comportam-se de modo a estar sempre perto da mãe – A isso ele chama de “comportamento de anexação”, a função de proteger do perigo. Permanecemos perto da mãe, o bebê chimpanzé acha-se protegido contra os predadores que podem mata-lo. Permanecendo perto da mãe, o bebê humano encontra também proteção contra os perigos.

Admite-se que, de modo geral, aos seis ou oito meses o bebê formou uma anexação específica com a mãe. É então que nós todos, pela primeira vez, nos apaixonamos. E seja ou não esse amor ligado à necessidade fundamental de uma conexão humana, como acredito que seja, possui uma intensidade que nos torna extremamente vulneráveis à perda ou até mesmo à ameaça de perda- da pessoa amada.

E se, como estou convencida, uma conexão específica formada nos primeiros meses é vitalmente importante para um desenvolvimento saudável, o preço da quebra do elo crucial – o custo da separação – pode ser muito alto.

O custo da separação é alto quando uma criança de seis meses é deixada sozinha longe da mãe por muito tempo, ou levada de um lar adotivo para outro, ou ainda, deixada num creche em tempo integral – até mesmo na creche de Anna Freud – por uma mãe que promete voltar (voltará?). O preço da separação é alto em situações familiares normais, quando um divórcio, uma hospitalização, uma alteração geográfica ou emocional fragmenta a conexão da criança com a mãe.

O preço da separação pode também ser muito alto quando as mães trabalham não encontram quem tome conta dos filhos ou não podem pagar esse serviço – e mais da metade das mães com filhos de menos de seis anos atualmente trabalha fora! O movimento feminista e a simples necessidade econômica está lançando milhares de mulheres no mercado de trabalho. Mas a pergunta: “O que vou fazer com meus filhos?”, exige resposta melhor do que a resposta dos centros de cuidados infantis de vinte e quatro horas.

“Nos anos em que o bebê e os pais formam os primeiros contatos humanos duráveis”, escreve Selmma Fraiberg, “quando amor, confiança, alegria e auto-avaliação emergem através do amor profícuo dos companheiros humanos, milhões de crianças em nosso país podem estar aprendendo... nos nossos bancos de bebês... que todos os adultos são permutáveis, que o amor é caprichoso, que ligações humanas podem ser investimentos perigosos, e que o amor deve ser reservado para a própria pessoa a serviço da sobrevivência.”
O preço da separação é quase sempre muito alto.

Naturalmente, tem de haver separações nos primeiros anos de vida. E sem dúvida, produzirão tristeza e dor. Mas a maioria das separações normais, dentro do contexto de um relacionamento afetuoso e estável, dificilmente deixará cicatrizes no cérebro. E é certo que mães que trabalham podem estabelecer um relacionamento amoroso, confiante e humano com seus filhos.

Mas quando a separação põe em perigo aquela ligação primeira, torna-se difícil criar confiança, segurança, adquirir a convicção de que durante a nossa vida encontraremos – e merecemos encontrar – pessoas que satisfaçam nossas necessidades. E quando as primeiras conexões são instáveis ou desfeitas, ou mesmo prejudicadas, podemos transferir a experiência e as respostas a ela para aquilo que esperamos dos nossos amigos, nossos filhos, nosso marido, até para nossos sócios comerciais.

Esperando o abandono, ficamos desesperados: “Não me deixe; sem você não sou nada, sem você eu morro!”.

Esperando a traição, procuramos cada falha, cada lapso: “Está vendo? Eu deveria saber que não podia confiar em você”.

Esperando uma recusa, fazemos exigências excessivas e agressivas, com fúria antecipada por saber que não serão atendidas.

Esperando o desapontamento, procuramos garantir que, mais cedo ou mais tarde, seremos desapontados.

Temendo a separação, estabelecemos o que Bowlby chama de conexões iradas e ansiosas. Afastando os que amamos com nossa dependência incômoda. Afastando os que amamos com nossas exigências excessivas. Com medo da separação, repetimos sem lembrar nossa história, impondo novos cenários, novos atores e uma nova produção para nosso passado esquecido, mas ainda tão poderoso.

Pois não estamos sugerindo que podemos lembrar conscientemente experiências da primeira infância, se, por lembrar, queremos dizer refazer a imagem da mãe nos deixando, ou de estar sozinho num berço, ou numa creche aonde não se tem a presença dela, nada e ninguém conseguem substituir, nem mesmo o pai, os avós etc. Nada pode substituir uma mãe para uma criança, nada! Quarenta anos depois, uma porta se fecha com violência, e a mulher é envolvida por ondas de terror primitivo. Essa ansiedade é a sua “lembrança” da perda.
A perda dá origem à ansiedade quando é iminente ou considerada temporária. A ansiedade contém as sementes da esperança. Mas quando a perda parece permanente, a ansiedade – protesto – transforma-se em depressão – desespero – e não só nos sentimos sozinhos, como tristes e responsáveis (ela se foi por minha culpa, por minha causa), sem esperanças (nada posso fazer para trazê-la de volta), desamados (“alguma coisa em mim me faz indigno de ser amado”) e desesperados (“de agora em diante vou me sentir assim para sempre”). 

Estudos demonstram que as perdas na primeira infância nos tornam mais sensíveis às perdas que sofreremos mais tarde. Assim, no meio da vida, nossa resposta à perda de uma pessoa da família, a um divórcio, à perda de um emprego, podem ser causas de depressão grave – a resposta daquela criança desamparada, desesperançada e zangada.

A ansiedade é dolorosa. A decepção é dolorosa. Talvez seja mais seguro não sofrer a perda. E enquanto na verdade não possamos evitar uma morte ou um divórcio – ou evitar que nossa mãe nos abandone -, podemos criar estratégias de defesa contra a dor da separação.

A indiferença emotiva é uma dessas defesas. Não podemos perder uma pessoa amada, se não amarmos. A criança que quer a mãe e cuja mãe nunca está presente pode aprender que amar e precisar é por demais doloroso. E ela poderá, nos seus relacionamentos futuros, pedir e dar muito pouco, investir praticamente nada, e tornar-se indiferente- como uma rocha – porque “uma rocha”, como nos diz a canção dos anos 60, “Não sente dor. E uma ilha jamais chora”.

Outra defesa contra a perda pode ser a necessidade compulsiva de tomar conta de outras pessoas. Ao invés de sofrer, ajudamos os que sofrem, E por meio das nossas bondosas ministrações, aliviamos nossa antiga sensação de desamparo e nos identificamos com aqueles de quem cuidamos tão bem.

A terceira forma de defesa é nossa autonomia prematura. Proclamamos nossa independência cedo demais. Aprendemos muito cedo a não permitir que nossa sobrevivência dependa da ajuda ou do amor de pessoa alguma. Vestimos a criança desamparada com a armadura rígida do adulto autoconfiante.

Essas perdas que estudamos – essas separações prematuras da primeira infância – podem desviar nossas expectativas e nossas respostas, podem desviar nosso modo de enfrentar futuras perdas necessárias das nossas vidas. No livro extraordinário de Marilynne Robinson, Housekeeping, a heroína desolada medita sobre o poder da perda, lembrando: “Quando minha mãe me fazia esperar por ela, estabelecia em mim o hábito da espera e da expectativa, que torna cada momento presente mais significativo do que ele não contém”.

A ausência, ela nos faz lembrar, pode se tornar “gigantesca e múltipla”.

A perda pode conviver conosco durante toda a nossa vida.




Judith Viorst



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Ainda faltam alguns capítulos... 




A CONEXÃO FINAL - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst

Por mim e pela minha filha, Maria Eduarda Carrilho
Roberta Carrilho




A CONEXÃO FINAL:

Todas as nossas experiências de perdas, relacionam-se com a Perda Original, a da conexão mãe-filho. Pois, antes começarmos a encontrar as separações inevitáveis da vida quotidiana, vivemos num estado de identificação completa com nossa mãe. Esse estado ideal, esse estado sem fronteiras, esse sou-você-você-é-eu, esta “fusão harmoniosa interpenetrante”, esse “Eu estou em você, você está em mim”, esse isolamento à prova de frio, de solidão e das intimações de imortalidade. Uma condição conhecida por amantes, santos, psicóticos, viciados em drogas e bebês. É o que chamamos de bem-aventurança.

Nossa conexão original de bem-aventurança é a ligação umbilical, a identificação biológica no útero. Fora do útero experimentamos a ilusão gratificante de que compartilhamos com nossa mãe uma fronteira comum. Nosso desejo eterno de união, dizem alguns psicanalistas, dá origem ao nosso desejo de volta – de volta, se não ao útero, pelo menos ao seu estado de união ilusória, chamada simbiose, um estado “pelo qual, bem no fundo do inconsciente original e primitivo... todo ser humano anseia”.

Não temos lembranças consciente da nossa vida no útero – nem de como o deixamos. Mas um dia foi nosso e tivemos de abandoná-lo. E embora o jogo cruel de desistir do que amamos, para crescer, seja repetido a cada novo estágio de desenvolvimento, esta é a nossa primeira e talvez a mais difícil renúncia.
A perda, o abandono, a desistência do paraíso.

E embora não nos lembremos, também jamais esqueceremos. Reconhecemos um paraíso e um paraíso perdido. Reconhecemos um tempo de harmonia, de integração total, de segurança inviolável, amor incondicional... e um tempo em que essa integração foi irrevogavelmente rompida. Reconhecemo-lo na religião e no mito e nos contos de fadas, nas nossas fantasias conscientes e inconscientes. Nós o reconhecemos como realidade e como sonho. E enquanto protegemos ferozmente as barreiras do eu que demarcam claramente a divisão entre você e eu, desejamos também recapturar o paraíso perdido daquela conexão perfeita.

Nossa busca dessa conexão – da restauração da integração total – pode ser um ato de doença ou de saúde, pode ser uma fuga temível do mundo ou um esforço para expandi-lo, pode ser deliberada ou inconsciente. Por meio do sexo, por meio da religião, da natureza, da arte, por meio das drogas, da meditação, até com exercício físico, tentamos obscurecer as fronteiras que nos separam. Tentamos escapar da prisão da separação. Às vezes conseguimos.

Às vezes, em momentos fugazes – momentos de êxtase sexual, por exemplo – voltamos àquela integração, embora só algum tempo depois. “Depois do amor”, como diz o belo poema de Maxine Kumin, só depois é que podemos compreender onde estivemos:

Depois, o compromisso.
Os corpos retomam suas fronteiras.
Essas pernas, por exemplo, minhas.
Seus braços o trazem de volta.
Nossos dedos, nossos lábios
Admitem sua propriedade.
Nada mudou, exceto
o momento em que
o lobo, o lobo ávido
que fica fora do eu
deita-se suavemente, e dorme.

Argumenta-se que essa experiência – a completa união física que o ato sexual pode nos proporcionar – leva-nos de volta à integração total da nossa infância. Na verdade, o analista Robert Bak define o orgasmo como “o compromisso perfeito entre o amor e a morte”, o meio pelo qual reparamos a separação entre mãe e filho através da extinção momentânea do próprio eu. É verdade que bem poucos vão para a cama com a presença de encontrar a mamãe entre os lençóis. Mas a perda sexual da nossa separação (capaz de assustar tanto a algumas pessoas a ponto de impedi-las de chegar ao orgasmo) nos dá prazer, em parte, porque, inconscientemente, estamos repetindo aquela primeira conexão.

Sem dúvida, Lady Chatterley nos deixou para sempre a visão da bem-aventurança autodissolvente do orgasmo, como “ondas que rolam uma depois da outra para longe de nós mesmos”, até “ser tocado o centro de todo seu plasma, até ela se sentir tocada... e até partir”. Outra mulher, descrevendo experiência semelhante da perda do próprio eu, diz: “Quando me satisfaço tenho a impressão de ter voltado para casa”.
Mas o orgasmo não é o único meio de extinção do eu, de pôr para dormir o lobo ávido. Existem estradas diferentes e variadas que nos levam para além das fronteiras pessoais. 

Outros, a união harmoniosa pode ser alcançada por meio do mundo natural, por meio da demolição do muro que separa o homem da natureza, permitindo que algumas pessoas – de vez em quando – “voltem da solidão do individualismo para a conscientização da unidade com tudo o que existe...” Existem os que jamais sentiram essa união com a terra, o céu e o mar, e aqueles que – como Woody Allen – sempre afirmaram: “Eu e a natureza somos dois”. Mas alguns homens e algumas mulheres encontram consolo e alegria não só em ver, mas também em ser a natureza – em ser, temporariamente, uma parte da “vasta harmonia que envolve o mundo”.

A arte pode também – às vezes – apagar a linha que separa o observador da obra observada, naquilo que Annie Dillard chama de “momentos puros”, momentos em que “fiquei plantada, boquiaberta, renascida, na frente de um determinado quadro, naquele rio, mergulhada até o pescoço, ofegante, perdida, retrocedendo para a profundeza da aquarela... encantada, abismada, e tive de ser literalmente trazida para a tona”.

Há certas experiências religiosas que podem criar também um estado de integração total. Na verdade, a revelação religiosa pode penetrar a alma tão inexoravelmente que – nas palavras de Santa Teresa – “quando ela (a alma) volta a si, é completamente impossível duvidar que esteve em Deus e que Deus esteve nela”.

A união mística é possível por meio de várias experiências transcendentais. A união mística põe um fim ao eu. E seja essa união entre um homem e uma mulher, entre o homem e o cosmos, entre o homem e uma criação artística do homem e de Deus... ela repete e restaura – por momentos breves e perfeitos – a sensação oceânica da conexão mãe-filho, onde “o eu, e o nós, o tu, não podem ser encontrados, pois no Um não pode haver distinção”.

Contudo, precisamos fazer algumas distinções: entre o psicológico e o santo. Entre o fanático e o verdadeiro religioso. Podemos questionar a legitimidade da união cósmica inspirada em drogas ou em bebida, e duvidar da veracidade dos cultistas de manto e sandália que exclamam: “Extasiado, eu me fundi com a massa, e saboreei o prazer glorioso que acompanha a perda do ego”.

Em outras palavras, podemos dizer que a união absoluta é boa quando não é demente, desesperada ou permanente – é ótimo desaparecer temporariamente dentro de um quadro, não é bom desaparecer para sempre dentro de um culto. Provavelmente, aceitamos com maior facilidade as experiências divinas de Santa Teresa do que a dopada união com Deus de um viciado em drogas. E vamos diferenciar a vida sexual de um adulto mais ou menos saudável do sexo que é apenas simbiose, do sexo que nada mais é do que uma fuga assustada da separação.

Pois os analistas nos dizem agora que o orgasmo vaginal, antes considerado como o marco definitivo da maturidade sexual feminina, pode ser experimentado com enlevo por mulheres gravemente perturbadas, que se integram à fantasia não com um homem, mas com a mãe. Os homens também procuram as mães no sexo. Um paciente relata que, sempre que começa a “pensar loucamente”, pode aliviar essa “loucura” pagando uma prostituta para se deitar nua com ele e abraça-lo até sentir que está se “fundindo no corpo dela”.

Evidentemente, essa fusão pode ser às vezes apenas simbiose – a volta desesperada à infância insegura e dependente. Na verdade, ficar preso – fixar-se – na fase simbiótica ou voltar – regredir – a essa fase por meios que dominam nossa vida é indicação de perturbação emocional. A doença mental grave chamada psicose simbiótica da infância, e grande parte da esquizofrenia do adulto também, são consideradas como fracassos na tentativa de manter as fronteiras que separam o indivíduo dos outros. O resultado é que “eu não sou eu. Você não é você, e você também não é eu; eu sou, ao mesmo tempo, eu e você, você é ao mesmo tempo você e eu. Não sei se você é eu, ou eu sou você”.

Na fase mais insana, essa fusão de você e eu pode ser frenética, assustada e furiosa, mais colorida de ódio que de amor. O sentimento é: “Não posso viver com – ou sem – ela”. O sentimento é: “Ela está me sufocando, mas sua presença me faz real, permite-me sobreviver”. Na fase mais insana, com a intimidade intolerável e a existência em separado parecendo impossível, a união completa pode não ser uma benção, mas uma necessidade furiosa.

Estamos falando de doença séria – de psicose. Mas problemas com a simbiose podem também produzir dificuldades emocionais menos extremas.

Vejamos o caos da Sra. C., atraente e infantil aos trinta anos, que dormiu com a mãe até os vinte anos, quando, encontrou um homem tolerante, feminino com quem se casou. A Sra. C. mora no apartamento acima do da mãe, a qual faz todo o serviço doméstico da filha, e de um modo geral, governa a vida dela. A Sra. C. não pode pensar em se mudar para um lugar mais conveniente sem sentir-se fisicamente mal. A Sra. C. tem uma neurose simbiótica, pois, ao contrário das crianças com psicose simbiótica, seu desenvolvimento é normal nas partes importantes. Contudo, em outros setores ela se comporta, e inconscientemente vê a si mesma como uma metade de um par simbiótico. Inconscientemente também teme que, se esse par for separado, nem ela nem a mãe sobreviverão. 

Desde o começo de sua vida, a Sra. C. compartilhou com a mãe um relacionamento simbiótico de ansiedade e dependência. Não é de admirar, observamos sabiamente, que não possa se libertar. Porém, até a mais saudável união mãe-filho pode impedir a separação subsequente, como observa o analista Harold Searles: “Provavelmente, a principal razão da nossa resistência para desenvolver uma identidade individual é o fato de sentirmos que esse desenvolvimento se interpõe, cada vez mais, entre nós e a mãe com quem compartilhamos uma união total”.

Devemos contar entre as perdas necessárias a desistência dessa união total.

Jamais desistiremos enquanto desejarmos recuperá-la.

Sim, temos desejos de união absoluta, mas para alguns homens e mulheres – não especialmente insanos – esses desejos podem dominar secretamente suas vidas, penetrando em todos os seus relacionamentos importantes e influenciando todas as suas decisões. Uma mulher, tentando escolher entre duas atraentes propostas de casamento, fez a escolha certa noite, durante o jantar, quando seu acompanhante deu a ela – como sua mãe – uma colherada de comida na boca. A promessa tentadora e tácita de gratificações infantis imediatamente pôs um fim à sua indecisão. Casou-se com ele.

O analista Sydney Smith diz que para essas pessoas – em contraste com o resto de nós – o desejo universal pela união completa não foi eliminado de modo benigno. Ele se estabelece como uma “fantasia dourada” central, tenaz, modeladora da vida, a qual, durante o tratamento psicanalítico, só pode ser revelada lenta e relutantemente.

“Sempre senti”, diz um dos pacientes do Dr, Smith, “que em algum lugar distante existe uma pessoa que fará tudo por mim, alguém que vai satisfazer todas as minhas necessidades de modo mágico, e como num conto de fadas providenciar para que eu tenha tudo o que desejo, sem nenhum esforço da minha parte... Durante toda a minha vida, essa ideia esteve comigo, bem no fundo da minha mente. Não sei se serei capaz de viver sem ela”.

Viver com fantasias douradas de uma infância sem fim pode ser uma recusa neurótica ao crescimento. Mas o desejo momentâneo de união completa, o desejo de, uma vez ou outra, anular as diferenças entre o outro e nosso eu, a vontade de recapturar o estado mental que se parece com a união da infância com nossa mãe, não é, por si mesmo, anormal ou indesejável.

Pois experiências de união completa podem servir como alívio para a solidão da separação.

E experiência de união completa podem nos ajudar a transcender nossos antigos limites, podem nos ajudar a crescer.
Os analistas chamam de “regressão a serviço do ego” a volta construtiva a um estágio anterior de desenvolvimento. Isso significa que, dando um passo atrás, às vezes podemos ajudar o avanço do nosso desenvolvimento. “Imergir para emergir”, diz o psicanalista Gilbert Rose, “pode ser parte do processo fundamental do crescimento psicológico...”

Num livro interessante, intitulado A Procura da Unidade, três psicólogos fazem afirmações espantosas sobre os benefícios em potencial das experiências de união. Apresentam uma hipótese, baseada em experiência de laboratório, segundo a qual a indução das fantasias do tipo simbiótico – fantasias de união total – podem ajudar os esquizofrênicos a pensar e agir mais normalmente e, com a ajuda da de técnicas de modificação do comportamento, pode melhorar o desempenho de estudantes na escola, aliviar os temores do fóbicos, ajudar fumantes a deixar o cigarro, alcoólatras a deixar a bebida, e os que precisam fazer dieta, a passar sem a comida!

Esses resultados, na realidade, foram produzidos, dizem os autores, em experiências controladas, nas quais os indivíduos ficaram expostos a uma mensagem subliminar (mensagem apresentada com tanta rapidez que o observador não tem consciência de tê-la visto), que dizia:

“MAMÃE E EU SOMOS UM SÓ”.

O que estavam fazendo os pesquisadores? E por que exatamente pensam que funcionou?

Já vimos que os desejos da união total persistem na vida adulta, e que – como a Sra. C. e a senhora que recebeu comida na boca claramente demonstram – podem geralmente motivar com intensidade o comportamento. Sendo assim, os autores argumentam que, se o desejo não satisfeito da união total pode produzir comportamento psicótico e outras perturbações, talvez a satisfação – fantasiosa – desse desejo de ser alimentado, protegido, aperfeiçoado, ter segurança, pode produzir uma vasta gama de efeitos benéficos.
A solução, nesse caso, seria procurar a satisfação na fantasia. Como?

Como o sonho que esquecemos ao acordar, mas que nos deixa com a boa ou má sensação durante o dia todo, as fantasias nos afetam fora na nossa percepção consciente. E a fantasia da união total pode ser ativada, dizem os autores, pela mensagem subliminar de “MAMÃE E EU SOMOS UM SÓ”. Os autores demonstram a seguir que, com algumas exceções importantes, a mensagem produz sentimentos agradáveis e uma mudança positiva, o que provar o valor psíquico das fantasias de união total.

Um exemplo: dois grupos de mulheres obesas iniciaram uma dieta, seguindo um programa de emagrecimento. Os dois grupos perderam peso. Mas as mulheres do grupo exposto à mensagem subliminar de união total perderam mais que as do outro.

Outro exemplo: adolescentes perturbados, em tratamento num centro residencial, submeteram-se a testes de leitura; os resultados foram comparados aos obtidos no ano anterior. Todo o grupo apresentou melhora, mas o resultados dos que foram expostos à mensagem de união total foram quatro vezes melhores que os do outro grupo.

Ainda outro exemplo: um mês depois do término de um programa para ajudar a deixar de fumar, verificaram quantos ainda não estavam fumando. O resultado foi 67% dos que haviam sido expostos à mensagem de “MAMÃE E EU SOMOS UM SÓ”, e 12,5% dos que não foram expostos à mensagem.

Não acho que devemos concluir que a mensagem subliminar de “MAMÃE E EU SOMOS UM SÓ” será terapia do futuro. Nem, como vimos, tem como objetivo dar um pouco de união total à nossa vida. Na cama, na igreja, nos museus de arte, em momentos de inesperada queda das barreiras, gratificamos nosso desejo permanente de união total. Essa gratificação passageira, essas fusões, são experiências valiosas que aprofundam, e não ameaçam nosso senso do eu.

“Ninguém”, escreve Harold Searles, “pode ser tão completamente individualizado, tão completamente ‘amadurecido’ a pondo de perder a capacidade para o relacionamento simbiótico.” Porém, às vezes temos a impressão de tê-la perdido. Às vezes o lobo, o lobo ávido que fica fora do eu, recusa-se a baixar a guarda, recusa-se a dormir. Às vezes sentimo-nos apavorados demais para permitir que ele durma.

Sem dúvida, uma união que implique o aniquilamento do eu pode gerar ansiedade de aniquilamento. Dar a nós mesmos, entregar-nos por amor ou qualquer outra forma de paixão – pode nos parecer uma perda e não uma vantagem. Como podemos ser tão passivos, tão possuídos, tão sem controle, tão... não vamos enlouquecer? E como poderemos nos encontrar novamente? Consumido por essas ansiedades, o indivíduo pode erguer barricadas, não fronteiras. Isolando-se de qualquer ameaça à sua inflexível autonomia. Isolando-se de qualquer experiência de entrega emocional.

Contudo, o desejo de recuperar a bem-aventurança da união total mãe-filho- aquela perfeita conexão – jamais é abandonado. Nós todos vivemos, num nível subconsciente, como se nos tivéssemos tornado incompletos. Embora a ruptura da unidade primária seja uma perda necessária, permanece como “um ferimento incurável, que aflige o destino de toda a raça humana”. E falando conosco através dos sonhos que sonhamos, das histórias que criamos, a imagem da reunião persiste e persiste – e limita nossa vida.

A força que está por trás do movimento do tempo é um lamento que não pode ser consolado. Por isso, o primeiro evento é tido como uma expulsão, e o último, a esperança da reconciliação e da volta. Assim a lembranças nos impulsiona, assim a profecia é apenas uma lembrança brilhante – haverá um jardim onde nós todos, como um só criança, dormiremos na nossa mãe Eva...



Judith Viorst


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