Em ano de eleição as lorotas crescem exponencialmente. Os estudiosos do assunto dizem que é possível apontar mentirosos. Saiba como
De um jeito ou de outro, muito ou pouco, você vai mentir neste ano. Você também vai ouvir muitas mentiras em 2014. Assim é a vida desde que o primeiro hominídeo indicou erradamente o lado onde estava a caça, roubando assim do rival a chance de dividir com ele mais tarde um naco de carne defumada. A mentira é um recurso puramente humano, tão privativo da nossa espécie quanto a fala e a negociação. Nenhum outro ser vivo tem o dom da fala. Nenhum outro conhece os mecanismos da troca. Nem o chimpanzé, nosso primo mais próximo, é capaz de oferecer a outro, digamos, um cacho de bananas com a condição de ganhar um lugar mais aconchegante na árvore. A capacidade de falar, negociar e mentir foi sendo refinada durante a trajetória evolutiva humana até chegar a seu ápice na figura de um político treinado por um marqueteiro em ano eleitoral. Em 2014, portanto, se prepare. Alguém vai tentar pela fala azeitada negociar seu voto em troca de alguma promessa mentirosa.
Obviamente, nem todos os políticos são desonestos. Muitos têm senso moral, ou simplesmente consciência, que, segundo Charles Darwin, pai da teoria da evolução, é a característica que mais claramente nos distingue dos animais. O jogo ardiloso da política é necessário, e sem ele não temos democracia. Mas, em tempo de eleição, é preciso redobrar os cuidados. Dizia o chanceler alemão Otto von Bismarck (1815-1898): “As pessoas nunca mentem tanto quanto depois de uma caçada, durante uma guerra e antes de uma eleição”. Os mais de 22 500 candidatos aos mais diversos cargos eletivos vão se esmerar em ganhar seu voto usando, para isso, aquelas conquistas evolutivas da espécie que eles tão bem dominam. Infelizmente, não existe um método infalível para saber se um político está mentindo. Uma pista é saber se ele já mentiu antes. A probabilidade de um enganador compulsivo tentar ludibriar de novo é altíssima. A boa notícia é que pesquisadores de diversos ramos científicos, da psicobiologia à neurociência, da linguística à psiquiatria, chegaram, finalmente, a métodos altamente precisos para definir quando uma pessoa, político ou não, está mentindo.
É possível detectar qualquer mentira? Teoricamente, sim. A evolução dotou a espécie humana da capacidade de fingir, mas não, com exceção talvez dos poetas e dos grandes atores, de fazê-lo completamente. A mentira tem pernas curtas justamente por ser detectável. Pouca gente se incomoda com a mentira social, aquela facilitadora da convivência, usada para fugir de um jantar indesejável, para recusar um convite ou para justificar um atraso. Quando a praticamos ou quando nos aplicam uma delas não chega a ser nenhuma tragédia, embora esse tipo de mentira seja moralmente tão condenável quanto as enganações mais sérias.
Uma pesquisa conduzida pelo psicólogo Jerald Jellison, da Universidade da Califórnia do Sul, nos Estados Unidos, mostra que cada pessoa ouve 100 mentiras por dia. “Sua mensagem foi direto para a pasta de lixo. Não sei o que aconteceu. Manda de novo, por favor” é uma bastante provável. Outra: “O trânsito estava muito pior do que eu esperava, por isso me atrasei”. Quem abusa desse tipo de saída costuma também prevaricar em questões mais significativas. Dizem os pesquisadores: um terço de todos os currículos profissionais contém pelo menos uma informação inventada. E pior: 83% dos recém-formados tentam enganar o entrevistador quando se candidatam ao primeiro emprego, e não se sentem culpados por isso.
Outro estudo colocou em números uma constatação já feita pelo senso comum. A de que é mais fácil mentir a alguém conhecido ao telefone do que cara a cara. Quase 40% das mentiras são ditas durante as ligações telefônicas e 27% em conversas presenciais. A mesma pesquisa encontrou apenas 21% de mentiras em mensagens instantâneas enviadas por celular ou pelas redes sociais. Somente 14% das mentiras contadas por amigos, parentes e conhecidos chegam pelo e-mail. São coisas da vida. Essas mentiras aborrecem, mas não destroem.
O grande mérito dos especialistas é o aprimoramento dos métodos de detecção da mentira intolerável, que corrói a coesão social e abala os alicerces da vida em comunidade. É a do criminoso que mente para escapar de punições. É a do demagogo que esquece o eleitor no dia seguinte ao da eleição. É a da autoridade municipal que, para não perder o emprego, minimiza os danos de uma enchente ou a gravidade de uma epidemia de meningite.
Tecnicamente, as mentiras podem ser divididas em dois grupos, as ofensivas e as defensivas. As do primeiro grupo são aquelas ditas para afastar uma pessoa ou grupo de pessoas de algo valioso, de modo que o mentiroso usufrua sozinho. São da mesma natureza da mentira do hominídeo que direcionava os outros caçadores para o lado errado. Nesse grupo se enquadram, benignamente, os grandes dribladores do futebol ou do basquete, que fingem uma intenção e executam outra para se livrar de um defensor. Malignamente, aqui estão os falsificadores, os inventores de esquemas de investimentos fajutos e os malandros de todos os calibres. As mentiras defensivas são ainda mais clássicas, como aquela contada pela criança que quebrou um vaso caro e põe a culpa no vento. Mas é também a do assassino que nega ter estado com a vítima no momento em que ela foi morta.
Uma pessoa sem nenhum treino específico é capaz de identificar que está sendo alvo de uma mentira pouco mais da metade das vezes. Os especialistas, usando de todas as suas armas, conseguem apontar um mentiroso em 90% dos casos. Em condições ideais, as taxas de sucesso podem chegar a 95%.
O que são essas condições ideais? São aquelas em que a pessoa investigada já é suspeita de ter praticado determinado ato e em que existem outros tipos de prova contra ela, faltando apenas a confissão definitiva. É ideal também que o pesquisador tenha conhecimento da maneira de falar e de outros hábitos do suspeito. Alguém que gagueja durante o interrogatório está mentindo? Em geral, esse é um indício, mas, obviamente, ele não tem validade se a pessoa é gaga de nascença. Também faz parte das condições ideais que o pesquisador ou interrogador nos casos criminais seja da mesma nacionalidade e comungue da mesma cultura do indivíduo suspeito de estar mentindo. Nada, porém, muito distante do senso comum.
O fascinante mesmo e o que elevou as taxas de acerto à fronteira do infalível foram as pesquisas sobre as reações faciais, corporais e verbais que fazem parte da natureza do ser humano. Um dos grandes nomes dessa linha de pesquisa é o psicólogo americano Paul Ekman. Em meados dos anos 60, ele começou a catalogar o que classificou como “microexpressões faciais”. Pelo estudo da contração ou relaxamento dos 43 músculos do rosto, Ekman codificou a gramática facial básica e universal da espécie humana.
As sete emoções básicas (medo, tristeza, nojo, alegria, desprezo, surpresa e raiva) podem ser lidas nas expressões faciais dos seres humanos. Darwin já havia percebido essa universalidade nas expressões faciais de tristeza e alegria. Os estudiosos modernos dos antepassados humanos mostraram que, muito antes da fala e da escrita, a linguagem facial e corporal era uma maneira eficiente de se comunicar. A evolução biológica nos primatas chancelou apenas entre os seres humanos a mutação da esclera para a cor branca - deixando-a escura e sem definição nos demais.
Por essa razão, nossos olhares são tão expressivos. Só os seres humanos vertem lágrimas. Mas os olhos são ainda mais sutis. Todos nós, e não apenas os grandes romancistas, podemos ler no olhar de homens e mulheres sinais inequívocos de amor, ódio, raiva, alegria, tristeza, triunfo ou desdita, confiança ou desespero.
Ekman ampliou os estudos de Darwin para outras emoções e descobriu como os músculos da face trabalham para produzir cada detalhe das microexpressões. Ele testou sua teoria no Brasil, no Chile, na Argentina, no Japão, nos Estados Unidos e com indivíduos das tribos de Papua-Nova Guiné. Em todas as culturas as microexpressões básicas podiam ser facilmente associadas às mesmas emoções. Um nativo de Nova Guiné quando quer demonstrar desprezo por alguém ou algo faz um movimento involuntário com os lábios, esticando um lado mais do que o outro, produzindo um desenho assimétrico com a boca. Um brasileiro, argentino ou americano reage da mesma maneira na mesma situação.
Entre 2009 e 2011, Ekman acompanhou as filmagens de um popular seriado americano baseado em sua trajetória, o Lie to Me (em português, Minta para Mim), no qual o protagonista é um interrogador profissional. Tim Roth, excelente ator hollywoodiano que se encarregou do papel principal, foi treinado por Ekman para imitar as expressões faciais que remetem às sete emoções clássicas. O gabarito construído a partir da interpretação de Roth é um manual de como flagrar um criminoso. Um criminoso tende a fingir surpresa e depois tristeza ao ser interrogado sobre o destino da vítima. A surpresa é mais fácil de ser encenada. Mas são evidentes para um especialista as microexpressões faciais de uma pessoa que tenta fingir-se de triste quando não está. Só um ator de enorme talento e ainda assim depois de muita prática pode produzir todas as contrações musculares faciais associadas indelevelmente à tristeza.
Disse a VEJA a escritora e pesquisadora americana Pamela Meyer, discípula de Ekman, executiva-chefe da consultoria Calibrate e autora de Liespotting (em tradução livre, Detector de Mentiras): “Um desonesto sempre deixa marcas de sua mentira no próprio rosto, em sua fala, em seu corpo. Quer saber se um político corrupto está mentindo? Faça a ele uma pergunta totalmente inesperada, que o tire da zona de conforto, como um ‘por que o senhor teve de desviar dinheiro público?’, e note se sua face indica desprezo ou raiva, enquanto ele tenta se defender”.
Em seu livro, Pamela dá dicas de como perceber quando alguém não é sincero. A mais essencial é procurar discrepâncias entre o que a pessoa diz e como se comporta. Se alguém garante que ama a esposa, mas seu rosto denuncia um sentimento de desprezo, pode se tratar de uma tentativa de enganar o interlocutor. Diz Pamela: “Com muita prática, flagrar a mentira se torna algo automático, como dirigir um carro”.
As técnicas que nasceram com Ekman, aplicadas a episódios históricos como a célebre frase de Richard Nixon em um pronunciamento de TV em 1973 - “eu não sou bandido” -, tentando negar o inegável no escândalo de Watergate (veja os quadros ao longo desta reportagem), são úteis para desmascarar mentiras públicas de personalidades conhecidas. Mas são úteis também no cotidiano - porém por razões bem mais nobres do que se transformar em um implacável caçador de mentiras.
Ekman e Pamela Meyer desencorajam as pessoas a se tornarem compulsivos detectores humanos de mentiras. Eles acham que ser capaz de perceber os sinais exteriores da mentira ajuda cada um a ser mais honesto consigo mesmo e com os demais. “Saber quando alguém mente é uma maneira também de aprender e se educar para não mentir. Nós crescemos emocionalmente se somos capazes de identificar a falta de sinceridade de um interlocutor”, diz Pamela Meyer.
Combinadas com o polígrafo, invenção americana da década de 20 do século passado, o mais popular detector de mentiras e ainda em uso pelas polícias dos Estados Unidos, as técnicas mais modernas podem chegar quase à perfeição. Entre elas estão os algoritmos, programas de computador capazes de analisar centenas de milhões de dados e tentar encontrar neles algum padrão significativo. É por meio de um desses algoritmos que o Facebook varre toda a sua rede de mais de 1 bilhão de usuários em busca de perfis falsos. As pessoas que fingem ser quem não são no Facebook podem ser desmascaradas, como os mentirosos do mundo analógico, por emitirem sinais da própria falsidade. Ao contrário dos perfis reais, os falsos tendem a dar explicações copiosas sobre por que eles são quem dizem que são. Eles precisam convencer e, ao se esforçarem muito, se entregam. Isso equivale ao que alguns estudiosos consideram quase uma confissão de mentira, que são frases do tipo: “Para ser totalmente honesto com você...” ou “Nunca revelei isso antes, mas para você eu vou dizer...” ou ainda “Por que razão eu mentiria?... (Que tal para evitar ser condenado ou para salvar seu casamento?)
Estudos sobre mentiras nos chats da internet ainda são incipientes, mas um padrão pelo menos já pode ser considerado uma indicação razoável de que a pessoa do outro lado está mentindo. Esse padrão se revela quando a pessoa diminui a velocidade normal com que tecla. Isso pode ser interpretado como alguém que precisa ganhar tempo, pois está fabricando uma história. A verdade não precisa ser fabricada. A mentira, sim.
“Todo mentiroso pego com a guarda baixa precisa ganhar tempo para se recompor e continuar com sua história falsa”, diz Mark Bouton, ex-agente do FBI, autor de um livro sobre sua experiência policial na detecção de mentiras pela análise da linguagem, das expressões faciais e das posturas corporais. Bouton diz que mentir cansa e o mentiroso tem dificuldade de manter a mesma história por longo tempo. “Mentir é estressante, já que é preciso ficar atento, tenso, o tempo inteiro”, concorda a psicóloga Leila Tardivo, da Universidade de São Paulo.
Mark Bouton lista dez sinais que, segundo sua experiência, apareceram associados a alguém decidido a mentir. São eles:
1. Tocar nervosamente a ponta do nariz, a região logo abaixo dos olhos ou cobrir a boca ao falar.
2. Fugir da pergunta e evitar o essencial, dando excesso de detalhes sobre fatos desconectados do ponto central.
3. Alguém que fala com correção, e começa a cometer erros gramaticais grosseiros quando o assunto central da questão é levantado.
4. Afastar a cabeça ou jogar os ombros para trás como reação a uma pergunta direta são movimentos defensivos de quem não quer responder (não necessariamente mentir).
5. Fazer gestos incompatíveis com a emoção descrita revela um esforço mental enorme em não fugir do enredo inventado.
6. Repetir a pergunta que acabou de ser feita integral ou parcialmente é sinal de que a pessoa quer ganhar tempo para construir uma história falsa.
7. Manter todo o tempo os punhos fortemente fechados ou as mãos no bolso é indicador de que a pessoa não quer dizer algo que considera valioso para quem pergunta.
8. Cruzar e descruzar as pernas ou balançá-las descontroladamente são reações defensivas ao mesmo tempo físicas e psicológicas de quem se sentiu incomodado com a pergunta.
9. Quem percebe que está dizendo coisas desconexas ou falsas tende a terminar as frases (mesmo as sérias) com um sorriso e encolher ligeiramente os ombros.
10. Quando uma pessoa está mentindo, ela tende a fechar os olhos por mais tempo, como se procurasse internamente uma resposta.
São provas de que alguém está mentindo? Não. São reações que um interrogador profissional percebeu em pessoas que, mais tarde, por associação com evidências físicas, se mostraram culpadas. Aconselha Bouton: “Não saia por aí gabando-se de ser capaz de flagrar mentirosos”.
Bom conselho, pois a experiência humana é rica e diversa demais para ser enquadrada em alguns sinais exteriores. Além disso, a mentira é companheira da espécie humana há tempo demais para se revelar facilmente.
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