segunda-feira, 30 de abril de 2012

MEMÓRIA CULPADA - Guilherme Pavarin



TODO CÉREBRO PRODUZ LEMBRANÇAS FALSAS. 
O PROBLEMA: ELAS PODEM FAZER 
INOCENTES CONFESSAREM
CRIMES QUE NÃO COMETERAM.


O físico Charles Hohson e sua esposa Karen, enfermeira, viviam o sonho americano. Moravam numa casa confortável na cidade de Madison, em Nova York, tinham bons empregos, carros e muitos amigos. Nunca foram vistos brigando. Eram sociáveis, queridos entre os vizinhos, pareciam levar uma vida normal. Mas só pareciam. Dentro do lar, o casal se transformava: Charles liderava rituais satânicos e molestava sua filha Charlotte. Já Karen, quando não xingava e afogava a garota no banho, perseguia-a com facas. Charlotte tinha apenas 3 anos.

Seriam fatos assustadores - se não fossem falsos. A violência na família Johnson, na verdade, nunca existiu. Ou melhor, nunca existiu fora da cabeça de Charlotte. Os maus-tratos surgiram na sua mente durante um tratamento psicológico que realizou na adolescência, em 1991. E apenas em janeiro de 2011, depois de investigação minuciosa, a polícia concluiu que as denúncias eram "completamente absurdas", decorrentes de uma "terapia negligente". No processo, a clínica teve que pagar aos pais de Charlotte uma indenização de US$1 milhão. Mas o casal não conseguiu o mais importante: fazer com que a filha desacreditasse suas lembranças.

O caso da família Johnson não é o único. Nos últimos anos, foram descobertas pelo mundo dezenas de pessoas que acreditaram ter cometido ou sofrido crimes que não aconteceram - ou dos quais não participaram. O mais famoso deles é o assassinato de Teresa de Simone, de 1079, que tece seu desfecho correto só em 2009, na Inglaterra. Após 27 anos preso por ter confessado o estupro e o homicídio da garota, o inglês Sean Hogston foi inocentado por meio de análises de amostras de DNA incompatíveis com a sua.

Segundo a perícia britânica, Hogston sofria da "SÍNDROME DE FALSAS MEMÓRIAS", uma incapacidade de distinguir o real do imaginário. O mesmo problema de Charlotte e de milhares de pessoas pelo mundo.

"Todos somos suscetíveis a esse tipo de lembranças em algum nível, mas certas pessoas são mais vulneráveis, como aqueles que têm mais lapsos de atenção, que têm algum problema mental e que pontuam baixo em testes padrões de inteligência", diz a americana Elizabeth Loftus, psicóloga da Universidade da Califórnia e uma das maiores pesquisadoras do distúrbio no mundo.

Nos tribunais, a hipótese das memórias inventadas começou a ganhar força em 2003, com o professor islandês de psicologia forense Gisli Gudjonsson, do King's College , na Inglaterra. Ele descreveu que a maioria das falsas confissões envolvia pessoas com problemas psicológicos, como falta de controle e percepções distorcidas. Mais tarde, em 2007, um estudo complementar da psicóloga americana Allison Redlich, da Universidade de Allbany, constatou que 22% dos criminosos com distúrbios mentais seriam capazes de produzir testemunhos fantasiosos.  Muitas vezes, com detalhes impressionantes, como se tivessem participação do crime. Outros presos, sem nenhuma doença mental, teriam um risco de 12% de fazer o mesmo. Para os especialistas, grande parte do problema estaria nos interrogatórios. "Quem assume um crime que não cometeu geralmente é psicologicamente vulnerável: tem baixa auto-estima e personalidade submissa", afirma o psicólogo e professor americano Saul Kassin, do Williams College. Para evitar confrontos com as autoridades, essas pessoas criariam histórias falsas durante os depoimentos. E, o pior: muitas acreditariam na própria mentira.


SENTINDO A CULPA

O processo de como a memória falsa pode ser induzida é explicado no experimento de internalização da culpa, da década de 90. Nele, estudantes realizaram um trabalho de digitação e eram instruídos a não tocar numa tecla específica - que seria capaz de danificar o computador. Em alguns casos, os fiscais da prova acusaram injustamente os alunos de terem quebrado a regra, e pediam para que assinassem uma confissão. Sob pressão 40% deles se declararam culpados.

A seguir, na segunda amostra do teste, um fiscal chamava os participantes para a sala e dizia que havia visto apertarem a tecla. A partir do falso testemunho, a incidência de quem assumia a culpa subiu para 94%. O mesmo estudo foi replicado na Holanda, em 2004, com uma única diferença: a confissão escrita por ter apertado o botão proibido custaria muito dinheiro aos participantes. O número, para surpresa dos cientistas, foi similar ao estudo antigo.

Kassin, que conduziu um dos experimentos, explica: "Mostrar falsas evidências faz com que a pessoa inocente fique confusa e questione a própria memória, cogitando ter sofrido um apagão ou que seu cérebro reprimiu esse ato horrível". Esse pensamento, então, faz com que o inocente comece a imaginar como fez aquilo. O resultado é o brotamento de uma falsa memória bastante real.


QUANDO A CABEÇA ERRA

Hoje, a teoria mais aceita sobre a formação das falsas lembranças atribui a causa à nossa incapacidade de lembrar os detalhes de fatos passados. Nossa memória seria dividida em duas categorias: específica e genérica. A primeira se refere aos detalhes (onde as pessoas estavam no momento de um crime, a cor da faca do assaltante). Já a segunda é a que armazena significados (um assalto armado, violento, uma separação afetiva traumática, etc). Para dar espaço a outros eventos, vamos, aos poucos, perdendo a memória específica, detalhada. Armazenamos apenas a dos significados, e com base nisso recriamos fatos do passado de uma nova maneira. Irreal. Falsa. Confusa. Não temos a convicção da certeza, por isso inventados uma história imaginária em nosso pensamento que acreditamos que realmente foi real. É mais fácil aceitar a ilusão do que admitimos que estávamos equivocados durante todo tempo. Um equívoco íntimo, solitário.

"Quando nossa memória funciona bem, existe uma tendência que eliminemos os detalhes. É o que nosso sistema cognitivo faz para economizar energia", diz a psicóloga Lilian Stein, da PUC-RS e autora de um livro sobre o assunto. Por isso, uma pessoa que tenta se lembrar de uma viagem que aconteceu há tempos ou depõe muitos dias depois do crime tem grandes chances de inventar fatos.

Constatações como essa chamaram a atenção de várias instituições de direitos humanos nos últimos anos. A ONG americana Project Innocence, por exemplo, ganhou novas sedes na Europa e na Oceania, e já inocentou 273 pessoas acusadas de crimes graves com base em apelações para exames de DNA.

A má notícia, porém, é que não há como evitar as falsas memórias. Especialistas creem que o melhor jeito de diminuir o impacto delas é criando técnicas elaboradas de entrevista nos tribunais. "A resposta sempre depende da pergunta", diz Elizabeth Loftus. E somente um profissional que conheça a psicologia humana é capaz de extrair memórias sem contaminá-las.

"FALSAS EVIDÊNCIAS FAZEM COM QUE QUESTIONEMOS NOSSA MEMÓRIA, COGITANDO TERMOS REPRIMIDOS A MÁ LEMBRANÇA", DIZ O PSICÓLOGO SAUL KASSIN.

Evitar ao máximo interrogatório com crianças: Elas esquecem dos detalhes muito mais rápidos que os adultos. E, sem ter vivido o suficiente para extrair significado das memórias, podem fantasiar as lembranças.

Proibir o detector de mentiras: A verdade é que os detectores de mentira não funcionam.O famoso método Reid, que leva em conta o comportamento e a linguagem corporal não consegue diferenciar mentirosos de ansiosos.

Gravar todo o testemunho: Grande parte das condenações nos interrogatórios. Uma pergunta intimidadora pode gerar uma dúvida no entrevistado, que passa a questionar sua memória e a acreditar na fantasia.

Entrevistas curtas: Pesquisas mostram que pessoas se tornam mais suscetíveis quando estão exaustas. Para acabar logo com a sessão dão respostas disciplicentes e aumentam a capacidade de transformar a mentira em verdade.

Treino de entrevista cognitiva: A entrevista cognitiva é importante para identificar alvos vulneráveis antes dos interrogatórios. Com ela é possível afirmar se a pessoa sofre de algum distúrbio mental ou se é bastante sugestionável.

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