domingo, 8 de abril de 2012

LIÇÕES DE AMOR - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst



Por mim e pela minha filha, Maria Eduarda Carrilho
Roberta Carrilho



“Pois o amor... é o sangue da vida, o poder de reunião 
do que está separado”.
Paul Tillich

LIÇÕES DE AMOR
Ser um eu separado é a mais gloriosa, a mais solitária meta. Amar a si mesmo é bom, mas... incompleto. Ser separado é doce, mas a ligação com alguém fora de nós mesmos é muito mais doce.

Nossa existência diária exige tanta aproximação quanto distanciamento, a inteireza do eu, a inteireza da intimidade. Reconciliamos a união com a separação por meio do amor comum e terreno.

Nossa mãe – o primeiro amor – nos dá as primeiras lições de amor. É nosso socorro e nosso abrigo. É a nossa segurança. A mãe ama sem limites, sem condições, sem interesse próprio nem expectativas. Vive para o filho. Sem dúvida morrerá por ele.

Do que estamos falando?

Pois certamente nossa mãe de carne e osso não era esse ideal perfeito. Ela se cansava, se ressentia, se queixava. Sem dúvida, amava outras pessoas e nem sempre nos amava, e deve ter havido momentos em que nós a aborrecíamos, incomodávamos e enraivecíamos. Contudo, se a mãe for suficientemente boa, argumenta Winnicott, essa bondade é sentida como perfeição. Se ela for apenas ‘suficientemente boa’, nossos desejos, sonhos e fantasias se confirmam, e ela nos dá o sabor do amor incondicional.

Mas, quando a mãe da união total torna-se a mãe da separação, aprendemos a limitação do amor. 

Aprendemos o preço que teremos de pagar, o preço que não podemos pagar, aprendemos que às vezes o amor falha, que às vezes queremos e não conseguimos. E, reconciliando tudo isso em imagem de tamanho natural dos outros e no nosso eu, começamos a renunciar ao que devemos renunciar – começamos a aceitar as perdas necessárias, que são uma pré-condição para o amor humano.

Nem todos fazem isso.

E alguns continuam a exigir o incondicional amor materno, fantasiado e disfarçado em relacionamentos amorosos adultos, furiosos quando o parceiro espera dar e receber mutuamente, furiosos quando esperam que ‘suas’ necessidades sejam atendidas. Alguns continuam a exigir o amor materno incondicional, e então, se o parceiro perguntar: “O que eu ganho com isso?”, não compreendem a pergunta.

Pois não devemos esquecer que o amor infantil é experimentado como harmonia, do tipo: “As necessidades dela e as minhas são uma só”. Quando começamos a separar, aprendemos que mamães e filhos têm agendas diferentes. Quando começamos a separar, aprendemos a amar a mãe-que-não-é-eu.

Embora o amor adulto comece com a separação entre o eu e o outro, o desejo de desfazer essa separação persiste. E amar, argumentam – por mais que os amantes sejam maravilhosamente amadurecidos – implica o desejo de voltar aos braços da mãe. Jamais nos libertamos desse desejo, mas podemos infundir nele a capacidade de amar, e não só de ser amado, de dar – não apenas tomar. “Quanto mais de dou”, diz Julieta, “mais eu tenho, pois ambos são infinitos.” Não precisamos ser amantes traídos pelas estrelas, nem masoquistas, nem oprimidos por porcos chovinistas para reconhecer a verdade da poesia de Shakespeare.

O psicanalista Erich Fromm, no seu livro ‘A Arte de Amar’, faz uma distinção entre amor infantil e amor adulto. E embora a distinção seja mais simples em palavras do que na vida real, sugere espectro dentro do qual todos podem se posicionar.

“O amor infantil segue o princípio de que ‘amo porque sou amado’”.

“O amor amadurecido segue o princípio de que ‘sou amado porque amo’”.

Mas não podemos chegar ao amor adulto sem passar pelo infantil. Não podemos amar se não soubermos o que é o amor. Não podemos amar outra pessoa como outra pessoa se não tivermos suficientemente amor por nós mesmos, um amor que aprendemos sendo amados na infância. E não podemos falar de amor, de amor infantil ou amadurecido, a não ser que estejamos preparados para falar também de ódio.

Ódio é uma palavra que sempre provoca constrangimento. O ódio pode ser feio, excessivo, descontrolado. O ódio é uma substância que envenena a alma. O ódio não é bom.

Pior do que não ser bom, é a ideia de que temos sentimentos de ódio para com as pessoas a quem amamos, a ideia de que desejamos mal a elas, ao mesmo tempo em que desejamos o bem, que até o mais puro amor vale menos do que o mais puro amor, pois foi imaculado pela ambivalência. Freud diz que, “com exceção de poucas situações, sempre há nas relações amorosas mais íntimas e mais ternas uma certa porção de hostilidade...”. É duvidoso que eu ou você estejamos entre as exceções.

A presença do ódio no amor é comum, mas só reconhecida com relutância. Chega, porém, o momento em que o enfrentamos em nós mesmos. Encharcada até os ossos, esperando na chuva pelo meu marido, que está vinte minutos atrasado, posso exclamar com perfeita sinceridade: “Eu mato você”. E quando no palco a atriz trágica suspira: “Ah, amei demais para não odiar agora”, tenho de confessar que também me senti assim.

Mas quando Winnicott relaciona dezoito motivos pelos quais, na sua opinião, a mãe odeia o filho, eu – e a maioria das mães – recuo horrorizada. “Errado!”, insistimos . “Não é verdade!”, repetimos. Não, não. Winnicott pede que reconsideremos uma canção infantil, a canção que cantamos para fazer dormir nosso bebê amado. “Quando o galho quebrar, o berço vai cair. O bebê e o berço vão despencar.” – “When the bough breaks the cradle will fall. Down will come baby cradle and all.” Talvez uma tradução aproximada seja: “Bicho papão, sai de cima do telhado. Deixa o menino dormir sossegado.” – Ou “Boi, boi, boi. Boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta”. Não é, diz Winnicott, o que se pode chamar de mensagem amigável. Na verdade, expressa alguns sentimentos maternos muito afastados de toda sentimentalidade. O que, para ele, está certo.

Pois o sentimentalismo, diz Winnicott, não tem nenhuma aplicação útil. É prejudicial porque “contém a negação do ódio...”. E essa negação, argumenta ele, impede que a criança em desenvolvimento aprenda a tolerar o próprio ódio. (“Meus pais jamais tiveram esses sentimentos horríveis. Que tipo de monstro sou ‘eu’ para sentir assim?). Precisamos aprender a tolerar nosso ódio.

Um garoto de quatro anos, cujos pais, podemos presumir, não são exageradamente sentimentais, canta na bandeira sozinho, todas as noites:

Ele não faz coisa alguma
Só fica sentado ao sol do meio-dia
E quando falam com ele, ele não responde
Porque os espeta com lanças e os joga no lixo
Quando dizem a ele para comer sua comida, só dá risada deles...
Não fala com ninguém porque não precisa.
E quando forem procura-lo, não vão encontrar,
Porque ele não vai estar lá.
Ele enfia espetos nos seus olhos e os joga no lixo,
E tampa a lata.
Ele não sai para tomar ar nem come seus vegetais
Nem faz xixi para eles, e vai ficar magro como um espeto.
Não vai fazer nada de nada.
Só ficar sentado ao sol do meio-dia.

Ninguém pode dizer que essas canção não sugere uma certa... hostilidade. Espetos nos olhos não são coisas muito bonitas. Porém, o que parece aberto a debate é se hostilidade e o ódio são expressões de um instinto básico de agressividade, ou se a agressão humana não passa de uma expressão de um amor desapontado e frustrado.

Freud adota a primeira posição, e argumenta que nós todos somos alimentados por dois instintos básicos – o instinto de agressividade e o instinto sexual. Entretanto – e este é um ponto absolutamente central da sua tese -, sexo e agressão misturam-se normalmente. Assim, o ato mais cruel e violento tem um significado sexual subconsciente. E assim, o ato mais delicado e amoroso sempre possui – “Vamos devorá-lo – nós o amamos tanto!” – um elemento de ódio.

Freud diz:

"É, sem dúvida, alheia à nossa inteligência e aos nossos sentimentos a união do amor com o ódio. A natureza, usando este par de opostos, consegue manter o amor sempre novo e vigilante, para protegê-lo do ódio que espreita atrás dele. Possivelmente, devemos o desabrochar mais belo do nosso amor à reação contra os impulsos hostis que sentirmos no íntimo".

Em outras palavras, podemos manter o ódio à distância enfatizando o amor. Mas no nosso inconsciente, diz Freud, somos ainda assassinos.

Por outro lado, outros afirmam que os seres humanos são intrinsecamente amorosos e bons. A agressão é uma reação, não é inata. Este mundo imperfeito no qual nascemos é a causa da nossa raiva, nossa crueldade, nossa hostilidade. Melhoremos o mundo – com Cristo, com Marx, com Freud, com Glória Steinem -, e finalmente exterminaremos o ódio.

Enquanto isso, entretanto, o ódio – na sua forma inata e/ou ambiental – está vivo, misturando-se com o amor. Na verdade, o psicanalista Rollo May argumenta que ambos são partes do que ele chama de ‘daimonic’, que inclui sexo e agressão, o criativo e o destrutivo, o nobre e o vil.

O ‘daimonic’ de que fala May é “o impulso de todo ser para se afirmar, perpetuar-se e crescer”. É uma força além do bem e do mal. Uma força que – se não for canalizada – pode nos levar a copular e matar cegamente, uma força que – se repudiada – pode nos deixar apáticos e semimortos, uma força que – quando integrada ao nosso eu – pode vitalizar todas as nossas experiências.

Assim, o amor não é ameaçado pelo ‘daimonic’, mas pela nossa negação dele, por nossa incapacidade de aceita-lo – com a agressividade e tudo o mais – como algo nosso. May cita o poeta Rilke, que diz: “Se meus demônios me abandonarem, temo que meus anjos desaparecem também”. Rilke está certo, diz May. 

Devemos abraçar os dois.

A luminosa Liv Ullmann, considerada a atriz mais carismática do mundo, sorri quando ouve falar nos demônios e anjos de Rilke, e diz-me que ela sempre (“por causa da minha aparência”) foi escolhida para desempenhar os papéis de “anjo”. Descreve um momento de revelação quando estava ensaiando ‘The Chalk Garden’, uma peça na qual interpreta uma mulher que, fugindo da destruição da revolução, encontra uma criança abandonada pela mãe.

- Minha interpretação foi sentar-me e olhar terna e docemente para o bebê. Cantar para ele, pegá-lo no colo e leva-lo comigo.

Mas o diretor, lembra ela, pediu-lhe que fosse mais fundo, que mostrasse as dúvidas da mulher, sua covardia, a ambivalência ante tão grande responsabilidade. “Não seja tão nobre”, foi seu conselho. “Não precisa representar a bondade o tempo todo”.

Na sua interpretação final do papel, Liv, como a mulher Grucha, apanha o bebê “mas o repõe no chão, pensando nas inconveniências que ele representa... A mulher afasta-se. Pára. Examina suas dúvidas. Volta. Relutantemente, senta-se outra vez. Olha para o pequeno embrulho. Olha para longe. Então, finalmente o apanha com um gesto de resignação, e afasta-se correndo...”.

- Só nesse caso – conclui Liv -, quando nenhuma situação ou personagem é obviamente boa ou má, é que se torna digna de ser representada.

Liv descreve como é fascinante para ela “mostrar as duas partes, mostrar a luta”, pois sempre haviam ensinado que “crianças boas não têm maus pensamentos”. Liv diz que agora, na sua vida e na sua arte, sabe que “precisamos trabalhar para sermos bons, a bondade sempre implica a escolha de ser bom”.

Reconhecer a própria agressividade não é um argumento a favor da brutalidade ou, que Deus nos livre, a favor de deixar tudo sem definição. Também não desafia o conceito de que, apesar da nossa ambivalência é que simplesmente podemos também odiar nosso companheiro amado, nosso filho, nossos pais, nosso querido amigo. A questão é que, dizer a nós mesmos que “essa coisa desagradável nada tem a ver comigo”, nos depaupera e pode nos deixar em perigo.

Nós também já fomos crianças de quatro anos, com palavras de ódio nos lábios. Talvez nos tenham dito: 

“Você não sente isso de verdade”. Talvez nos tenham ensinado que amar significa jamais ter vontade de enfiar espetos nos olhos do seu verdadeiro amor.

Isso é mentira.

A mãe dá ao filho as primeiras lições de amor – e do seu companheiro, o ódio. O pai – o “segundo outro” – encarrega-se de aperfeiçoá-las. Oferecendo uma alternativa para o relacionamento mãe-filho. Tirando o filho da união total e empurrando-o para o mundo. Apresentando o modelo masculino que pode complementar o feminino e fazer contraste com ele. E fornecendo outros significados talvez diferentes de ‘amável’ e ‘amar’ e ser ‘amado’.

Neste momento, devemos fazer uma pausa para acentuar o fato de que pais e bebês podem formar, muito cedo, uma ligação forte, e que, exceto pela capacidade de amamentar, os pais podem fazer tudo o que as mães fazem. Os pais podem ser, e muitos são as primeiras pessoas a cuidar do bebê. Porém, dizendo isso estaremos afirmando que mães e pais são intercambiáveis?

A resposta parece ser um não definitivo.

Michael Yogman, da Escola de Medicina de Harvard e do Hospital Infantil de Boston, cujas pesquisas têm contribuído muitíssimo para novas informações sobre o relacionamento pai-filho, argumenta que o “papel do pai com filhos bebês, é muito menos restrito biologicamente do que se pensa”. Segundo ele, estudos demonstram que os pais são tão sensíveis quando as mães às indicações emocionais dos bebês, e respondem a elas com a mesma habilidade. Além disso, afirma ele, os estudos do desenvolvimento da ligação com crianças de seis a vinte e quatro meses “nos dão evidência conclusiva... de que os bebês se apegam tanto aos pais quanto às mães”.

Entretanto – e há alguns entretantos cruciais, acentua ele -, mães e pais respondem aos seus bebês, e seus bebês respondem às mães e aos pais, de modo evidente e consistentemente diversos:

Os pais são imagens muito mais físicas e estimulantes. As mães são mais verbais e mais calmantes. Os pais despendem menos tempo cuidando do bebê – grande parte do tempo passam brincando. Os pais de um modo geral proporcionam mais novidades, mais excitação, mais acontecimentos fora da rotina quotidiana, e a criança, por sua vez, reage com mais entusiasmo. A criança (especialmente se for do sexo masculino) é mais inclinada a brincar com o pai, mas prefere a mãe quando está cansada ou tensa. E embora tanto o pai quanto a mãe possam investir profundamente no relacionamento com o filho, a biologia talvez arme o palco para um nível de intimidade mãe-filho que os pais só atingem depois de algum tempo.

O Dr. Yogman conclui dizendo que pais e mães nos dão experiências “qualitativamente diferentes” na infância, e que os papéis da mãe e do pai não são intercambiáveis, não são idênticos, mas recíprocos. E, ao mesmo tempo que acentua os benefícios do relacionamento profundo dos pais com seus bebês, faz notar também que “o componente biológico provavelmente é mais fraco nos homens que nas mulheres”.

Comparando seu papel de pai com o papel de sua mulher Susan, como mãe de Amanda, o jornalista Bob Greene faz uma observação semelhante:

“Não estamos muito satisfeitas hoje”, disse Susan para Amanda esta manhã. Você dormiu das onze às cinco...”

Acho que Susan quer dizer exatamente isso: “Nós não estamos muito satisfeitas hoje”. Usa a primeira pessoa do plural tantas vezes, que não pode ser um lapso; quando ela pensa em Amanda, pensa em si mesma; quando pensa em si mesma, pensa em Amanda. Por mais que eu ame Amanda, o relacionamento não é o mesmo; para mim somos ainda pessoas separadas. Nessa época de novas atitudes por parte dos homens, pergunto a mim mesmo se outros pais serão diferentes...

Creio que não. Acho que existe uma distância pré-integrada que um homem jamais pode eliminar por completo. Podemos tentar, mas não o conseguiremos.

Muitas feministas não concordarão com isso.

Mas a socióloga Alice Rossi, numa análise brilhante dos papéis de ambos os pais e dos papéis desempenhados pelos sexos, aplaude a pesquisa do Dr. Yogman e as experiências de Bob Greene. Na verdade, ela afirma que “nenhuma sociedade conhecida substitui a mãe no papel da primeira pessoa a tomar conta da criança, exceto nos casos de uma pequena e especial categoria de mulheres”, acrescentando que existem boas razões ‘biossociais’ para isso. (“uma perspectiva biossocial”, explica ela, “não questiona a determinação genética do que o homem pode ou não fazer, comparado à mulher; sugere isso sim, que as contribuições biológicas modelam o que é aprendido, e que existem diferenças na facilidade com que cada sexo pode aprender certas coisas”).

A Dra. Rossi argumenta que, no curso da longa história da humanidade, passada na caça e na formação de sociedades, as mulheres desenvolveram (e em parte possuem ainda) adaptações seletivas que as fazem melhores do que os homens para criar os filhos. Sim, é claro que há exceções; ela está falando das mulheres como um grupo. Argumenta também que o caráter cíclico hormonal das mulheres, e a gravidez e o parto, podem estabelecer uma predisposição com base biológica para um relacionamento com os filhos, pelo menos nos primeiros meses, mais intenso que o dos pais. E ela acredita que resíduos importantes dessa ligação materna mais forte continuam muito além da infância.

O que ela conclui disso tudo? Sua conclusão é que, por mais prematura que seja a educação para o papel do pai, e por mais que o ambiente familiar permita uma igualdade de oportunidade ao pai e à mãe, nossa herança evolutiva não pode ser eliminada, nem a ligação pai-filho pode ser igualada à ligação mãe-filho. Ela termina com a previsão de que, provavelmente, a mãe será sempre emocionalmente mais importante para o filho.

Isso não significa que os pais homens não são importantes para o desenvolvimento inicial da criança. São, sem sombra de dúvida, extremamente importantes. 
Como destruidores da unidade mãe-filho. 
Como fomentadores da autonomia e da individualização. 
Como modelos da masculinidade para os filhos. 
Como confirmação da feminilidade para as filhas. 
E como a figura outra-que-não-a-mãe que fornece uma segunda fonte de amor constante.

O pai representa um conjunto opcional de ritmos e respostas, ao qual a criança se liga. Como uma segunda base familiar, faz com que seja mais seguro sair de casa. Com ele como aliado – um amor -, é mais seguro também mostrar que estamos zangados quando nos zangamos com nossa mãe. Podemos odiar sem sermos abandonados, odiar e continuar amando.

O pai é a pessoa para quem a criança se volta, quando precisa resistir à tentação de reimergir na mãe – e quando precisa lamentar o paraíso perdido. Não se pode abandonar com sucesso a união simbiótica, a não ser que sintamos a tristeza dessa renúncia. O pai – que oferece interesse e apoio – faz com que a perda seja menos intensa, e portanto, possível.

O psicanalista Stanley Greenspan descreve a imagem do pai na praia, enquanto o filho luta para se libertar das águas simbióticas. Ele estende a mão e ajuda o filho a sair da água e continuar o caminho. Está ali como a segunda pessoa no amor da criança, como uma nova e diferente experiência, acrescentando riqueza e amplidão à compreensão do que é o amor.

E quando não temos pai, sentimos sua falta.

Na verdade, existe uma condição que podemos chamar de “fome de um pai”, um desejo intenso por aquele outro amor. Realizações e beleza, família e amigos, mesmo um filho abandonado podem não ser suficientes para satisfazer essa fome. Num tranquilo dia de verão, Liv Ulmann falou da morte do seu pai e da sua contínua busca do amor paterno.

É com raiva na voz que ele lembra a “mãe e a avó, chorando e gritando, competindo para ver quem sofria mais”. Para Liv, então com seis anos, jamais foi concedido o ‘status’ de queixosa. Seu sofrimento não foi reconhecido nem consolado.

Essa dor também não foi integrada na experiência de Liv, para que, lembra que ela: “Não acreditei que ele se fora. Eu me sentava ao lado da janela, pensando que ele ia voltar. Escrevia cartas para lá no céu. Punha seu retrato sob meu travesseiro, levava meus bichinhos de brinquedo para a cama, e partíamos todos numa viagem fantástica ao encontro dele”.

Não é difícil ver a criança sonhadora no rosto sardento dessa mulher de beleza não intimidadora, com seus olhos azuis e cabelos cor de caramelo. Não é difícil imaginá-la criança, acordando em meio a pesadelos e pedindo à lua “que as pessoas que ela amava nunca a deixassem”. Não é difícil imaginá-la criada numa casa de mulheres, aceitando o mito criado pela mãe de um homem que era como um deus, “bom, protetor, maravilhoso, perfeito”. Liv escreveu:

Durante muito tempo tentei me lembrar de papai... que esteve na minha vida durante seis anos, e não me deixou nenhuma lembrança real da sua passagem. Apenas uma grande falta. Que me feriu profundamente, a ponto de muitas experiências de minha vida se relacionar com ela. O vazio criado pela morte de papai deixou em mim uma espécie de cavidade, na qual experiências posteriores deviam ser colocadas.

Aos vinte e um anos, Liv se casou com um psiquiatra que “era tudo o que eu pensava que meu pais tinha sido, tudo o que minha mãe me contou sobre ele”. Alguns anos depois, ela o deixou por outro protetor, o grande diretor sueco Ingmar Bergman. “Minhas conexões com homens”, diz Liv, “baseiam se todas na tentativa de alcançar meu pai, a tentativa de preencher um vazio da infância com a crença de que esse homem existe, e depois com a revolta contra inocentes por não serem aquele homem”.

Seus relacionamentos com homens se devem ainda à “fome de um pai”.

Mas Liv tem quarenta e poucos anos agora. O caso com Bergman terminou há alguns anos. A filha dos dois está quase adulta. Ela conheceu outros homens. Minha pergunta: uma vez que Liv evidentemente compreende seu relacionamento com os homens, e uma vez que ela é tão completa, tão ‘Mensch’, não seria possível começar a fazer as coisas de outro modo? A resposta honesta e desinibida de Liv: provavelmente não.

“Posso trazer isso para a superfície e examiná-lo”, explica ela, “mas acho que sempre estará comigo. Suas raízes são tão profundas, tão básicas, que não pode ser retirado”.

Então, o que ela vai fazer? Liv responde:

“Viver com isso. E tentar me perdoar”.

Descobrimos com as primeiras experiências a apaixonada intensidade, que o amor pode oferecer, e a dor que pode causar. Repetimos e repetimos essas lições durante toda a nossa vida. E talvez, como Liv Ullmann, possamos dizer: “Lá vou eu outra vez”.

Às vezes, as lições não são muito apavorantes.

Brinco com uma garotinha que sofreu a perda traumática da mãe e do pai. No meio do brinquedo ela para, fica de pé, diz “tchau”. Ao que parece, seu estilo é: “estou deixando-a antes que você vá embora e me deixe”. E fico pensando se ela vai crescer com o impulso de abandonar o que ama antes que a façam sofrer, uma especialista em relacionamentos interrompidos.

Conheço um garoto que é sempre empurrado pela mãe. “Estou ocupada”, diz ela. “Agora não. Você está me atrapalhando”. Eu o vi insistir e choramingar e dar chutes na porta fechada do quarto da mãe. E imagino o que ele fará com as mulheres daqui a vinte anos, e o que ele vai querer, precisar, que elas façam para ele.

A repetição é compulsiva na natureza humana. Na verdade, é chamada compulsão repetida. Ela nos leva a fazer e repetir o que fizemos antes, tentando restaurar um estado anterior do ser. Ela nos leva a transferir o passado – nossos desejos antigos, nossas defesas contra esses desejos – para o presente.

Assim, aqueles a quem amamos e o modo que amamos são repetições – repetições inconscientes – de experiências anteriores mesmo quando essa repetição nos causa dor. E embora possamos fazer o papel de Iago, ao invés de Otelo, de Desdêmona, ao invés de Iago, sempre representamos antigas tragédias, a não ser que haja a intervenção da percepção e da intuição.

Aquele garotinho, por exemplo, pode representar seu desemparo fazendo o papel de marido passivo, submisso. Pode representar sua fúria assassina como marido que espanca a mulher. Pode escolher o papel de mãe e se tornar um marido frio do tipo você-tem-de-implorar. Ou, como pai ausente, pode simplesmente abandonar a mulher e o filho.

Aquele garotinho pode se casar com uma mulher que seja a imagem exata de sua mãe. Pode fazer com que ela se torne sua mãe. Pode pedir a ela o impossível, e quando ela recusar, talvez diga: “Você sempre me rejeita – igual a minha mãe”.

Repetindo o passado, ele pode repetir sua fúria, sua humilhação ou seu sofrimento. Ou pode repetir as táticas para derrotar a fúria, a humilhação, a dor. Repetindo o passado, ele atualiza seu ‘script’, para incluir as ligeiras variações das experiências subsequentes. Mas quem ama e como ele ama, serão sempre reflexos daquele garoto choramingas, furioso e que implora atenção.

Para muitos homens, a negação da dependência da mãe é repetida nos seus relacionamentos futuros, às vezes pela ausência de qualquer interesse sexual por mulheres, às vezes por um comportamento padrão do tipo amá-las e abandoná-las. Entretanto, para outros homens e mulheres, a dependência motiva o relacionamento amoroso; e, seja quem for que levem para a cama, será sempre (pelo menos para eles) a mãe gratificante, tão desejada.

Um relacionamento lésbico – como o que é descrito por Karen Snow em Willo – pode também repetir padrões amorosos da primeira infância:

Levado pelo tédio, Pete arranja um emprego de soldador numa fábrica de aviões. Mas as longas horas de trabalho manual não a transformam num homem. Ela é ainda a que se se sacrifica, continuando a cozinhar, lavar, passar e lavar o chão. Gasta grande parte do ordenado com Willo...

O elo masculino-feminino é frágil, comparado com esse elo mãe-filha. Cada uma está apenas caminhando nos sulcos profundos de sua primeira infância. Willo sempre foi a princesa distante, servida e censurada por uma mulher grosseira e martirizada; na verdade, por duas mulheres martirizadas: a mãe e a irmã. Pete sempre serviu à mãe glamorosa, sempre fora de casa, procurando realizar coisas. Ela foi dona-de-casa e cozinheira também para o pai, que sempre desejou um filho.

Descrevendo seu gosto por mulheres, o ativista político e médico pediatra Benjamin Spock revela também uma compulsão repetitiva, pois como ele mesmo acentua: “Sempre me sinto fascinado por mulheres severas, mulheres que posso vencer com meus encantos, apesar da severidade”. O modelo para essas mulheres – como o Dr. Spock sabe muito bem – foi sua mãe, exigente e extremamente crítica. E se, com seus oitenta e poucos anos, ele é ainda um homem excepcionalmente charmoso, o desejo de conquistar a mãe pode explicar essa qualidade.

“Sempre me intrigaram”, diz ele, “os homens capazes de amar mulheres de temperamento um tanto suave”. Essa conquista sugere, são fáceis demais para ter valor. “Sempre precisei de alguém que fosse especial e ao mesmo tempo representasse um desafio”. Diz que suas duas mulheres, Jane, a primeira, e Mary Morgan, a segunda, são versões – embora diferentes – desse tipo. (Como o Dr. Spock concordou em ‘dar permissão para que você e Mary falem de mim na minha ausência’, quero anotar aqui que Mary Morgan discorda. Ela afirma que não é o tipo de mulher exageradamente crítica que Spock descreve. Mas acrescenta: “Ele está sempre tentando me transformar nesse tipo de pessoa” – o que é também, naturalmente, uma compulsão repetitiva).

Repetimos o passado reproduzindo condições anteriores, por mais desafiador que isso possa ser como a mulher descrita por Freud que conseguiu não um, nem dois, mas três maridos, sendo que todos contraíram doenças fatais logo depois do casamento, e foram tratados por ela nos seus leitos de morte.

Repetimos o passado sobrepondo imagens dos nossos pais às imagens do presente, em geral uma prática míope, pois não percebemos que ser delicado não significa ser fraco (meu pai, coitado, era delicado, mas era fraco), que o silêncio pode ser amigável e não uma punição (os silêncios da minha mãe eram sempre punitivos), e que pessoas bondosas e tranquilas podem estar oferecendo algo novo – se conseguirmos vê-lo.

Repetimos o passado até mesmo quando, conscientemente, tentamos não repeti-lo, por mais inútil que seja a tentativa, como o caso da mulher que, desdenhando o casamento convencional e patriarcal dos pais, resolveu que o dela teria uma forma completamente nova. Sua mãe era dominada pelo marido autoritário? Muito bem, então seu marido seria do tipo que se deixa dominar. Além disso, ela seria inconvencional, moderna e livre que levaria abertamente os amantes para sua casa. Mas ela permitia que os amantes a maltratassem e humilhassem – creio que sua noção de moderno era a de um vale-tudo. Assim, na sua vida de mulher livre e autônoma, conseguiu repetir a submissão desprezível da mãe.

A compulsão repetitiva, escreve Freud, explica por que determinada pessoa é sempre traída pelos amigos, por outra é sempre de passar por estágios semelhantes e terminar do mesmo modo. Pois, embora sejam pessoas que parecem “perseguidas por um destino maligno, ou possuídas por uma força demoníaca”, escreve Freud, “esse destino é em grande parte determinado por elas mesmas e por influências da primeira infância”.

Parece razoável o desejo de transferir o passado agradável para o presente, procurar a repetição dos prazeres daqueles dias, apaixonar-se por aqueles que se parecem com os primeiros objetos da nossa afeição, repetir alguma experiência porque gostamos dela na primeira vez. Se a mãe era realmente maravilhosa, por que o filho não pode se casar com uma moça igual à que se casou com seu velho pai? Sem dúvida, todo amor normal – não precisa ser estranho, não precisa ser ostensivamente incestuoso – tende a compartilhar um amor de transferência.

Repetir o que é bom tem sentido, mas é difícil para nós entender a compulsão para repetir o que nos faz sofrer. E, embora Freud tenha tentado explicar essa compulsão como parte de um conceito duvidoso chamado: “instinto de morte”, pode ser também interpretada como nossos vãos esforços para desfazer – reescrever – o passado. Em outras palavras, fazemos, e repetimos e repetimos, na esperança de que dessa vez o fim será diferente. Continuamos a repetir o passado – quando éramos desamparados e conduzidos -, tentando dominar e alterar o que já aconteceu.

Repetimos a experiência dolorosa, estamos nos recusando a enterrar nossos fantasmas da infância. 

Continuamos a clamar por alguma coisa que não pode acontecer. Por mais que sejamos aplaudidos agora, ela jamais nos aplaudirá ‘naquela época’. Temos de abandonar essa esperança.

Temos que desistir.

Pois não podemos embarcar numa máquina do tempo, voltar a ser aquela criança há muito desaparecida e conseguir o que queremos quando tão desesperadamente desejávamos. Os dias para essa conquista já se foram, terminaram, desapareceram. Temos necessidades que podem ser atendidas de outros modos, modos melhores, modos que criam novas experiências. Mas, enquanto não pudermos chorar aquele passado, chorar e deixar que desapareça, estamos condenados a repeti-lo.

Tecendo o passado com o presente, podemos experimentar vários tipos e vários estágios do amor. Podemos amar, de um modo ou de outro, durante toda a nossa vida. “Relacione-se!”, diz um personagem de Howard’s End, de E.M. Forster. E carentes, românticos, extasiados, temerosos, descuidados, esperançosos – como tentamos fazê-lo!

Tentamos por meio do amor sexual – a cadência física da liberação orgástica; por meio de Eros – o ímpeto para a união e a criação; por meio do amor materno e do amor fraterno, do amor altruísta. Tentamos com o relacionamento humano, que inclui um ou todos os citados acima. Formados como um todo ou em partes, e para o bem ou para o mal, pelos instrutores da nossa infância, tentamos amar.

Tentamos e continuamos a tentar, porque uma vida sem conexões não vale a pena ser vivida. A vida solitária não é suportável. Erich Fromm escreve, numa eloquente passagem:

O homem tem o dom do raciocínio; ele é a vida consciente de si mesma... Essa percepção do próprio eu como entidade separada, a consciência da pouca duração da vida, do fato de que ele não nasce por vontade própria e não morre por vontade própria, de que morrerá antes daqueles que ama, ou eles antes dele, a consciência da sua solidão e separação, do seu desamparo perante as forças da natureza e da sociedade, tudo isso faz da sua existência separada e desunida uma prisão intolerável. Ficará insano se não puder se livrar dessa prisão e alcançar o mundo exterior, para se unir...

Assim, nossa nobre realização – a conquista da separação, do nosso eu – será também nossa perda dolorosa. Uma perda necessária – não pode haver amor humano sem ela. Mas, por meio do amor, essa perda pode ser superada.



Judith Viorst


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Ainda faltam alguns capítulos... 




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