Quando são confrontados com a suprema iniqüidade, quando se ultrapassa aquele ponto de perversidade face ao qual até a razão cessa e o sentido de humanidade some totalmente, os cristãos recorrem a duas expressões bíblicas: a "abominação da desolação" e a "parusia do Anticristo". É o que sentimos face ao massacre dos inocentes em Beslan.
"Abominação da desolação" traduz uma situação onde o mal irrompe com tal virulência, que deixa os olhos esbugalhados, secas as lágrimas e mortas as palavras na garganta. Pois assim foi com as pessoas em Beslan. Depois, ao se enterrarem as vítimas, pareceu-nos ouvir as palavras de São Mateus por ocasião da matança dos inocentes por Herodes:"Em Ramá (Beslan) se ouviu uma voz, muito choro e grande gemido: são as mães que choram seus filhos e suas filhas e não querem ser consoladas porque os perderam e eles nunca mais voltarão". É a dor infinita e o luto sem fim.
"Anticristo" configura outra situação de extrema maldade, situação que pode ganhar corpo em pessoas e movimentos. Ele é o reverso do Cristo. Cristo não é originalmente um pessoa, no caso Jesus de Nazaré. Cristo é uma dimensão, um modo de ser e um título para designar a história do amor, da bondade, da doação, da compaixão e do perdão no mundo desde o justo Abel até o último eleito. Esta dimensão-Cristo se encontra presente em cada ser humano. Em figuras seminais como Buda, Krishna, Miriam de Nazaré, Gandhi, Dom Helder e Irmã Dulce se densificou de forma singular. Para os cristãos, apareceu de forma suprema, em Jesus de Nazaré. Por isso começou a ser chamado de Jesus, o Cristo. Mas bem entendido: ele não detém o monopólio do "Cristo" que se realiza também em outras figuras históricas.
A dimensão-Anticristo se opõe à dimensão-Cristo. Ela representa a história do ódio, da perversidade, da desumanidade, da destrutividade em supremo grau. Pode expressar-se em estruturas de grande injustiça, em ideologias que se propõem eliminar etnias e em políticas que optam pela truculência como única forma resolver problemas. E pode também ganhar corpo em figuras perversas, das quais o século XX nos forneceu exemplares aterradores.
O Anticristo faz uso de duas armas: da política e da religião. Pela política arrogante, bestial e tirânica se impõe a todos e sacrifica os opositores. Pela religião utiliza os símbolos sagrados e o nome de Deus para seduzir à sua causa e conferir legitimidade última à sua política perversa. Sua blasfêmia maior reside, segundo São Paulo, no fato de "erguer-se acima de tudo que se chama Deus".
A dimensão-Cristo e a dimensão-Anticristo se permeiam nos envolvendo a todos em enfrentamentos dramáticos. Há momentos em que a dimensão-Anticristo parece triunfar como agora. Irrompe de forma tão aterradora que nos paralisa e quase rouba a esperança dos justos.Em circunstâncias assim consola-nos o Mestre:"O Cristo aniquilará o Anticristo com um simples sopro de sua boca". Mas quando, Senhor, quando?
A categoria Anticristo foi esgrimida na história com o fim de alguém satanizar o outro. Devemos precaver-nos contra identificações fáceis. Mas há momentos como o atual em que a perversidade é tanta que devemos usá-la como denúncia e profecia. O Anticristo está, sim, entre nós, agindo em ambos os lados. Eles têm em comum o desprezo pela vida e a falta de piedade para com os inocentes. E são assassinos frios.
Leonardo Boff
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