quinta-feira, 18 de março de 2010

A ÁGUIA E A GALINHA (PARTE III) - Leonardo Boff (uma metáfora da condição humana)


PARTE III

A história que acabamos de contar no estilo do midraxe-bagadá  hebreu representa uma poderosa metáfora da existência humana.

Para onde olharmos encontraremos a dimensão-galinha e a dimensão-águia. Elas vêm revestidas de muitos nomes: realidade e sonho, necessidade e desejo, história e utopia, fato e ideia  enraizamento e abertura, corpo e alma, poder e carisma, religião e fé, partícula e onda, caos e cosmos, sistema fechado e sistema aberto, entre outros.

O desafio maior é fazer conviver a águia com a galinha. Fazer conviver a águia e a galinha dentro de cada um de nós: eis a questão. Cumpre buscar o caminho do meio ao dar a cada uma a sua importância. Mas cuidado! Sem jamais dissociá-las. Então emerge o arquétipo da síntese e da totalidade dinâmica, tão buscado pelo coração humano.

Ai de nós, se nos contentarmos em ser somente galinhas, se permitirmos que nos reduzam a simples galinhas: encerrados em nosso pequeno mundo, de interesses feitos e de parcos desejos, com um horizonte que não vai além da cerca mais próxima. Não disse o poeta Fernando Pessoa: "eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho de minha altura"?

Somos galinhas, seres concretos e históricos. Mas jamais devemos esquecer nossa abertura infinita, nossa paixão indomável, nosso projeto infinito: nossa dimensão-águia.

Ai de nós, se pretendermos ser apenas águias que voam nas alturas, que enfrentam as tempestades e têm como horizonte o sol e o infinito do universo. Acabaremos morrendo de fome. A águia, por mais que voe nas alturas, é obrigada a descer ao chão para se alimentar, caçar um coelho, uma preguiça ou qualquer outro animal. Somos águias. Mas devemos, reconhecer nosso enraizamento numa história concreta, nuna biografia irredutível com suas limitações e contradições: nossa dimensão-galinha.

Sejamos galinhas e águias: realistas e utópicos  enraizados no concreto e abertos ao possível ainda não ensaiado, andando no vale mas tendo os olhos nas montanhas. Recordemos a lição dos antigos: se não buscarmos o impossível (a águia) jamais conseguiremos o possível (a galinha).

A HORA E A VEZ DA ÁGUIA
Momentos há em que se impõe articular as relações e realizar a síntese a partir da realidade da águia. Outros, a partir da realidade da galinha.

O QUE DETERMINA SER MAIS GALINHA OU MAIS ÁGUIA
Certamente, não a veleidade de cada um ou o bel-prazer do momento. Originalmente, cada ser humano tem uma estrutura básica que se manifesta mais como águia em alguns, mais como galinha em outros. Cada um precisa escutar essa natureza interior, captar a águia que se anuncia ou a galinha que emerge. Após escutá-las, importa usar a razão para ver claro e o coração para decidir com inteireza. Somente assim se conquistará a promessa de um equilíbrio dinâmico.

Num segundo momento, faz-se mister escutar os desafios da realidade, desafios que afetam cada pessoa. Eles cobram opções e decisões que marcam biografias e definem destinos. Se a pessoa não obedecer ao chamado do real, não será fiel ao tempo, nem a ela mesma. E perderá a chance de criar um centro fecundo, convergência das duas escutas: da natureza exterior e da natureza interior.

LIBERTAR A ÁGUIA EM NÓS
O midraxe-bagadá da águia e da galinha e as reflexões que fizemos anteriormente suscitam questões que demandam esclarecimentos. Elas pertencem à agenda permanente do ser humano.

Por que a águia caiu de seu ninho e ficou ferida? Por que foi reduzida à condição de galinha? Por que nós humanos somos seres instáveis e decadentes?

Foi uma graça a águia ter encontrado um bom samaritano que a ajudou a recuperar os sentidos e voltar a ser plenamente sadia. Qual a importância da solidariedade, da compaixão e da sinergia* na construção do humano?
*Sinergia = cooperação, convergência de energias, colaboração entre as pessoas que colocam em comum suas qualidades para a consecução de um bem comum.

Foi indispensável que alguém despertasse a galinha-águia para reacender-lhe o fogo interior de sua identidade. Qual a função da conscientização no processo de individuação?

O Sol despertou na águia sua identidade. Qual a importância da irrupção do Sol e da experiência do Numinoso para a pessoa?
* Numinoso = vem do latim numem que significa divindade. É sinônimo de sagrado, de fogo interior. Estado de consciência de quem teve uma experiência de encontro e de união com a Suprema Realidade.

A águia, plenamente águia, voou tão alto que se fundiu com o azul do firmamento. Qual o quadro final do projeto humano? Qual o termo de seu incansável buscar?

HERÓIS E HEROÍNAS DE SUAS PRÓPRIAS SAGAS
A história da águia e da galinha nos evoca processo de personalização pelo qual todo ser humano passa. Não recebemos a existência pronta. Devemos construí-la progressivamente. Há uma larga tradição transcultural que representa a caminhada do ser humano, homem e mulher, como uma viagem e uma aventura na direção da própria identidade.

COMO EM QUALQUER JORNADA HÁ RISCOS:
Incompreensões dos familiares, traições dos amigos, frustrações profissionais e fracassos no amor. Mas também conquistas: a descoberta da amizade, o florescimento do amor, a felicidade de experiências produtivas, o lento amadurecimento e o despontar da sabedoria da vida.

Nas viagens enfrentamos encruzilhadas. Que direção tomar? Somos obrigados a decidir em conformidade com nossos valores e com os grandes sonhos que alimentamos. Nas opções emerge o que somos por dentro: heróis e heroínas, fiéis até o sacrifício pessoal. Ou indecisos, covardes, vítimas de nossa própria omissão.

Ao superar obstáculos e ao encetar transformações necessárias para a conquista de seus ideias, cada um é provocado a ser herói/heroína de si mesmo e de sua própria saga.

Herói/heroína aqui tem pouco a ver com os estereótipos tradicionais que reduzem o herói/heroína ao combatente de guerra e aos feitos corajosos executados nela. Menos ainda, com os heróis/heroína das novelas da literatura e da televisão. Na nossa reflexão, herói/heroína é cada pessoa que assume a vida assim como se apresenta com caos e cosmos, com ordem e desordem, com realizações e frustrações, com um buraco interior do tamanho de Deus.

Herói/heroína constitui também um arquétipo* do inconsciente coletivo, presente e atuante dentro de cada um de nós. Numa compreensão psicanalítica, arquétipos são grandes símbolos, paradigmas**, padrões de comportamento acumulados no nosso inconsciente pessoal e coletivo, desde os primeiros albores do espírito. Eles nos orientam na forma como experimentamos as realidades vividas e sentidas.
*arquétipo = padrões de comportamento que existem no inconsciente coletivo, desde a mais remota ancestralidade. Figuras e símbolos que representam valores universais, presentes nas várias culturas.
**paradigmas  = modelo, padrão, solução exemplar. Um caso é considerado paradigmático quando serve de referência e de exemplo para situações semelhantes ou conaturais.

Os arquétipos são sempre ambivalentes: positivos e negativos. Vêm carregados de emoção e de fascínio. Por isso alguns os representam como deuses e deusas, guias interiores. Dentro de nós falam mediante sonhos, fantasias e representações mentais. Fora de nós, através de mitos, histórias, expressões simbólicas nas artes, na literatura e principalmente nas religiões.

Escutar os arquétipos significa dar atenção à voz de nossa interioridade e criar espaço para que ela se manifeste. Ela nos obriga a ser críticos e vigilantes em face das contradições e dos excessos dos arquétipos, que podem irromper avassaladores.

O que efetivamente conta não são as coisas que nos acontecem. Mas, sobretudo, a nossa reação frente a elas. Nessa reação irrompe a força irradiadora dos arquétipos. O decisivo são os sentimentos, os valores e as visões que tivermos elaborado com confronto com as venturas e desventuras da vida e o crescimento que elas nos proporcionaram. O arquétipo do herói/heroína nos ajuda a ser heróis e heroínas de nossa própria vida e jornada.

Nesse caminhar, o herói/heroína concreto transcende os limites biográficos. Faz uma experiência universal que o religa aos demais homens e mulheres. Deixa emergirem, então, visões, símbolos e valores universalmente válidos que brotam das profundidades do mistério da vida e dos desejos mais íntimos.

O herói/heróina percorre certas etapas necessárias à construção de sua individualização. São como eixos existenciais por onde corre e se define a vida. Trata-se de situações humanas que representam desafios, com os quais a pessoa aprende, acumula experiências, íntegra perspectivas, torna-se madura e, talvez, sábia.

Vamos descrever sucintamente seis situações existenciais que concretizam o arquétipo do herói/heroína. A águia passou por todas elas.

Cada pessoa humana se confronta com o desamparo existencial e com o sentimento de perda. Perda de um ente querido, de uma relação efetiva, de uma casa que se incendiou, de um posto de trabalho. Sente necessidade de uma mão que o levante e de um ombro no qual se possa apoiar com confiança. 

É a situação da águia caída e ferida. Ela está entregue aos samaritanos eventuais que passam pela estrada. Muitos simplesmente olham, dão de ombro e seguem seu caminho. Estão preocupados com mil tarefas. Pressumem que é mais importante cumpri-las do que cuidar de um desamparado no caminho. Há os que se esquecem de si, de seus afazeres e se enchem de compaixão. Colocam-se na condição do outro. Sentem o seu desamparo e se solidarizam com ele. Salvam a águia ferida.

Em toda situação de abandono está presente uma tentação e uma chance. A tentação consiste nisto: a pessoa não enfrenta o desamparo. Ou culpa sempre os pais, os irmãos, a companheira e outros por seus fracassos, ou fica esperando a solução, vinda da política, do Estado, da loteria, dos outros e de Deus. Essa atitude esconde sua omissão, sua falta de iniciativa e sua fuga da responsabilidade.

Mas há a chance de a pessoa aceitar o desafio do desamparo e de crescer com ele. Começa por desdramatizá-lo, pois pertence à finalidade da vida humana. Não somos onipotentes nem demos a nós mesmos a existência. Vivemos uma pobreza essencial. Dependemos objetivamente dos outros.

Essa situação de dependência não nos humilha porque caracteriza todos os seres do universo. Já o dissemos: estamos todos envolvidos nuna teia de inter-retro-relações. Esta situação, portanto, deve ser assumida sem amargura.

Por outra parte, a pobreza essencial e a interdependência nos abrem para a solidariedade universal. Sendo dependentes, ajudamo-nos uns aos outros na construção coletiva da vida. Ao invés de culpar os outros por nosso desamparo ou de nos omitir de batalhar contra ele, assumimos uma atitude positiva de empenho e de luta.

Por isso não devemos pedir a Deus que nos liberte do abandono. Há que suplicar-lhe forças para enfrentá-lo. Neste enfrentamento surge a figura do herói/heroína: do agüente, da resistência e da coragem.

Como sair do abandono? Que estratégias usar para continuar caminhando? Na resposta a estas questões surge o segundo arquétipo de herói/heroína: o caminhante ou o  peregrino.

No processo de nossa vida, lentamente vamos conquistando nosso ser, nosso lugar na sociedade, nossa profissão, nossos objetivos de curto e de longo prazo. É uma árdua caminhada. Temos de desenvolver nossos próprios recursos para sermos autônomos na jornada e não onerarmos os demais.

Tal diligência demanda tempo, paciência e autoconfiança. A águia ferida teve de esperar até recuperar lentamente todos os seus sentidos. Entendemos então a verdade cantada pelo poeta: "Caminhante, não há caminho. Faz-se caminho ao caminhar". É a sorte do herói/heroína peregrino.

Viver é lutar. O poeta inspirado ensinava: "A vida é um combate, que os fracos abate, que os fortes e os bravos só que exaltar". Eis a figura do terceiro tipo de herói/heroína: o lutador. Luta defendendo-se. Luta contra os obstáculos que se antolham na caminhada de sua realização. Luta no plasmar da vida e do mundo conforme seus sonhos e suas metas. Nada do que realmente vale se alcança sem esforço e sem fatigante trabalho.

A águia, para resgatar sua identidade, teve que se auto-superar. Vencer o medo inicial  Abrir os olhos ao Sol. Testar as asas abertas. E arriscar o voo rumo às alturas. O herói/heroína lutador sabe quantas lutas tem demandado historicamente a dignidade humana e a vida autônoma, justa e plena.

Toda luta exige doação, capacidade de renúncia e de sacrífico em favor dos outros e dos sonhos que se quer concretizar. Eis que aparece o quarto arquétipo do herói/heroína: o mártir. O mártir não ama a dor pela dor. Seria dolorismo. Como se diz no martírio de S. Martinho de Tours no século IV: "ele não temia morrer nem recusava viver". O mártir aceita a dor, o sofrimento e eventualmente a perseguição e a própria  morte como preço a pagar por causas e bens para os quais vale a pena jogar a vida. Sofrer assim é digno. O mártir, que pode ser cada um de nós, crê na lógica da semente: se não conhecer o escuro da terra, se não aceitar morrer, não viverá nem dará fruto. Quem quer conservar a vida, perdê-la-á. Quem ousar perdê-la, ganhá-la-á, enriquecida, de volta. Portanto, é morrendo que se vive mais, é entregando a vida terrenal que se obtêm a vida celestial.

Há ainda o quinto arquétipo do herói/heroína: o  sábio. Sábio tem a ver com saber e com sabor. Não com qualquer saber. Mas com saber que tem sabor. O saber tem sabor quando resulta de experiências, de sofrimentos, de observações dos vaivéns da vida. O sábio vê para além das aparências. Não se deixa iludir por elas. Por isso não tem ilusões. Tem intuições certeiras. Vê dentro das coisas. Capta a verdade profunda que se entrega somente aos atentos. A verdade não é feita de frases corretas, mas de visões que sintonizam o coração com o desejo e o desejo com a realidade. Só quem se abre à realidade e nutre profunda simpatia para com ela tem acesso à verdade. Por isso, só conhecemos verdadeiramente quando amamos. Quando nos fazemos um com a realidade.

O sábio aprende a ver as coisas do ponto de vista do Absoluto. Esse ponto de vista liberta dos enrijecimento conceptuais e da sedução das ideologias. Consegue ver todos os caminhos como setas que apontam para a meta suprema. Nas muitas religiões, por exemplo, entrevê a religação de tudo com tudo e com a Fonte donde todos os seres jorram. Em consequência dessa atitude, o sábio irradia gravidade e serenidade. Inspira confiança. Desperta, nos que se encontram à sua volta, o fogo interior do entusiasmo sagrado da verdade, pela transparência e pelo despojamento.

O arquétipo do sábio nos conduz à última expressão do herói/heroína arquétipo: o mago. Refletimos já sobre o mago do Tarô. Vimos como está conectado com as energias secretas do universo. Como transforma o mundo convencional em mundo mágico. Como transfigura os fracassos em sabedoria. Como recompõe a imagem quebrada em mil pedaços.

O mago consegue criar uma totalidade final sem deixar sobras. Uma sinfonia que recolhe em si todas as disfonias. O mago nos introduz em estados de consciência integradores que nos permitem vislumbrar, a partir de um centro de irradiação e de amor, a unidade de todas as coisas. Ele alarga as dimensões de nosso eu consciente na direção do eu profundo. A partir do eu profundo nos faz mergulhar no oceano divino que nos habita, Deus. Em derradeira instância, nos diz o mago, nós somos um com Deus. A alma amada se vê "no Amado transformada".

No processo de resgate e de realização de sua identidade, a águia viveu todas as estações desta jornada. Realizou plenamente o arquétipo herói/heroína: do aguente, do caminhante, do lutador, do mártir, do sábio e do mago. No termo do caminho encontrou o céu, o lar e a pátria da identidade.



Leonardo Boff -
A águia e a Galinha
(uma metáfora da condição humana)











Leia também:


PARTE I - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE II  - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE III - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE IV - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE V - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE VI - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)


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