segunda-feira, 22 de março de 2010

A ÁGUIA E A GALINHA (PARTE IV) - Leonardo Boff (uma metáfora da condição humana)

PARTE IV

O paraíso e a queda acontecem hoje: Por mais sucesso que tenha, o herói/heroína se confronta freqüentemente com uma ameaça: com a queda com o ferimento, eventualmente até com a morte. O herói/heroína é o que é, exatamente porque aprende a trabalhar essas anti-realidades. Incorpora-as e assim as supera criativamente.

Vejamos agora com certo detalhe a possibilidade da queda e o fato da própria queda. A história da águia nos suscita esta questão. Por que caímos? Por que tanto sofrimento no resgate e na realização de nosso próprio ser?

Se tivermos uma perspectiva mais global da realidade cósmica, terrenal e humana, poderemos lançar alguma luz sobre esta intrigante questão. Há uma constatação inegável, resultado das investigações mais seguras sobre o universo: ele está em expansão e em evolução. Dizer que está em evolução implica afirmar que o universo passa de formas simples para formas mais complexas, de situações de caos (desordem) para situações de cosmos (ordem).

O processo evolucionário supõe um universo perfectível, aberto e ainda não acabado. A verdadeira natureza das coisas ainda não se realizou totalmente. Vai se concretizando na medida em que o processo avança. Só no termo da história cósmica e humana e não no seu começo valem as palavras das Escrituras: "E Deus viu que tudo era bom". Até lá as coisas não são totalmente boas. Podem sempre melhorar. Vale dizer, passam de situações menos boas para situações melhores.

A seguinte seqüência, ordem-desordem-interação-nova ordem, é a característica mais perceptível dos seres vivos. Num organismo vivo partes se desagregam, outras se regeneram, e outras renascem.

Até o nível humano, esta situação não comportava maiores dificuldades. Estas, entretanto, surgiram quando irrompeu a consciência humana. Ela se caracteriza pela capacidade de fazer uma imagem de totalidade do real e por sentir-se habitada por um desejo infinito.

A consciência pode entrever o termo do processo evolucionário. Nos sonhos e nas projeções do imaginário, antevê a perfeição e a plena realização das potencialidades da criação. Sonha com o mergulho humano no oceano insondável do Ser. Tem a capacidade de saltar por cima do tempo e do processo em curso e de se colocar na culminância derradeira da evolução.

Em razão desta capacidade da consciência, deriva-se um drama: como combinar a perfeição final com o estágio imperfeito atual? Por que temos que percorrer, pacientemente, este longo percurso até chegar à perfeição terminal?

O drama se agrava em face da realidade da entropia*, do desgaste das energias, do envelhecimento natural e da inevitabilidade da morte. O dia ensolarado caminha lentamente para a noite escura. O ridente verdor da primavera desliza preguiçosamente para o vermelho alegre do verão. Para o amarelo sereno do outono  E para o cinzento desbotado do inverno. Todos os seres vivos nascem, crescem, maduram, envelhecem e morrem. Nenhuma força poderá deter esse curso irrefragável das coisas.
*entropia = desgaste natural e irreversível da energia de um sistema ou de todo o universo tendendo a zero = morte térmica (o calor todo se perde)


Considerando os já 15 bilhões de anos do universo e dos já 3,5 bilhões dos sistemas vivos, verificamos que a morte não é um fim derradeiro. Ela representa um momento de transformação dentro de um processo maior. Uma passagem alquímica* para um estágio mais alto e mais complexo. A morte não nega a vida. Ela é uma invenção inteligente da própria vida para possibilitar a si mesma uma religação maior com a totalidade do universo.


*alquímica = O que deriva da alquimia, a química pela qual medievais e renascentistas procuravam transformar todos os metais em ouro. A fórmula secreta se chamava pedra filosofal. Em termos psicanalíticos, significa as transformações profundas pelas quais passa uma pesso até conquistar a sua liberdade interior e o desenvolvimento de sua identidade.

Entretanto, não há apenas a morte. Há também a experiência da queda. Vivíamos uma situação segura, com certo número de certezas que nos causavam tranquilidade. Por uma razão qualquer, as coisas começaram a entrar em crise, a perder suas estrelas-guias, e se decompor. De repente, decaímos desta situação. Vivenciamos a experiência dolorosa da queda e da expulsão do paraíso. A experiência de queda e de perda atravessa toda a nossa vida. A vida pessoal e coletiva é feita de altos e baixos, de ascensões e quedas.

O capítulo terceiro do Gênesis relata a queda de Adão e Eva, da humanidade enquanto homem e mulher, com subseqüente expulsão do paraíso terrenal. Tal acontecimento é paradigmático da condição humana. Ele não se situa no passado remoto da humanidade, mas no seu presente, no momento atual. A cada momento caímos de nossos ideais na mais crua realidade. A todo instante nos sentimos exilados e expulsos deste mundo no qual não há lugar suficiente para nossos desejos mais profundos de amor, de liberdade, de compreensão, de compaixão e de paz.

Entretanto, somos livres. A liberdade nos foi dada para moldar a vida e modificar o destino. Na liberdade podemos acolher como rejeitar o paradoxo de paraíso e queda, de águia e galinha e de vida e morte. Podemos assumir a queda como desafio para nos auto-superar. Para nos tornar herói/heroína e assim crescer. Como podemos também ficar tão-somente na lamúria, na fuga ilusória e no encorajamento sobre nós mesmos.

Na liberdade podemos jovialmente hospedar a morte ou tentar, ilusoriamente, fugir dela. Pouco importa. Ela é soberana. Vem e sobrevém infalivelmente. Não se introduz no termo da vida. Instala-se já no seu começo. Lentamente vamos morrendo, a minuto a minuto, em prestações até acabar de morrer.

Dar a primazia à vida, olvidando sua mortalidade, é cair pesadamente nos braços da morte. Acolher, com serenidade, a morte porque pertence à vida, implica dar primazia à vida e viver uma inexprimível liberdade. É viver mais e melhor. É ressuscitar.

A história da jovem águia que caiu do ninho e se feriu perigosamente nos lembra a condição humana decaída. Sempre estamos sob a ameaça de cair do paraíso em que nos encontramos. esta situação de decadência faz nascer um permanente anseio de resgate e de libertação.



Leonardo Boff -
A águia e a Galinha
(uma metáfora da condição humana)











Leia também:


PARTE I - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE II  - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE III - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE IV - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE V - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE VI - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)


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