sábado, 13 de outubro de 2012

TÃO BOM QUANTO A CULPA - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst



Por mim e pela minha filha, Maria Eduarda Carrilho ...

Roberta Carrilho


“Sem Culpa 
O que é o homem? Um animal, não é mesmo? 
Um lobo perdoado em sua carne, 
Uma abelha inocente em sua copulação". 

Archibald MacLeish 



As realidades do amor e do nosso corpo nos convencem de que nem tudo é possível. Não somos seres sem limites, e jamais nos livraremos das barreiras impostas pelo proibido e pelo impossível – incluindo os limites impostos pela culpa. 

Pois, sejamos ou não as únicas criaturas capazes de sentir culpa, sem dúvida fazemos isso melhor do que as abelhas ou os lobos. E embora nossos sentimentos de culpa não tenham eliminados os Sete Pecados Mortais, ou nos convencido a obedecer aos Dez Mandamentos, certamente têm diminuído bastante nosso ritmo. 

Entretanto, devemos reconhecer que, embora a culpa nos prive de muitas coisas gratificantes, o mundo seria monstruoso sem esse sentimento. Pois as liberdades que perdemos, nossas restrições e tabus são perdas necessárias – parte do preço que pagamos pela civilização. 

Adquirimos o sentimento de culpa quando, mais ou menos aos cinco anos, começamos a desenvolver um superego, uma consciência, quando o “Não, você não pode” e o “Que vergonha”, que eram externos, agrupa-se como uma voz interior e crítica. A culpa passa a ser nossa quando, ao invés de pensar: “É melhor não fazer isto, eles não vão gostar”, o “eles” deixa de ser mãe e o pai para se transformar no “eu”. 

Pois não chegamos neste mundo comprometido com nenhum preceito moral admirável. Não se nasce com a intenção de ser bom. Queremos, queremos e queremos, e só lentamente desistimos de estender a mão e agarrar tudo. Mas o controle não pode ser chamado de consciência, enquanto não é capaz de leva-lo para nosso íntimo e fazer dele nossa propriedade, enquanto – a despeito do fato de que nossos erros jamais sejam conhecidos ou punidos – não sentimos aquele aperto no estômago, aquele frio na alma, aquele sofrimento auto infligido chamado culpa. 

A verdadeira culpa, podemos argumentar, não é o medo da ira dos pais, ou da perda do seu amor. A verdadeira culpa, podemos dizer, é o medo da ira da consciência, a perda do amor dessa consciência. 

Resolvemos nossos conflitos edipianos adquirindo uma consciência que – como nossos pais – limita e restringe. A consciência é o pai e a mãe instalados em nossa mente. Identificações posteriores, com professores e pregadores, com amigos, com superstar e heróis, modificarão nossos valores e nossos tabus. E o aparecimento, ao longo dos anos, de habilidades cada vez mais complexas, prepara o caminho para ideias morais mais complexas. Na verdade, acredita-se hoje que os estágios do nosso raciocínio moral (o psicológico Lawrence Kohlberg diz que são seis) desenvolvem-se paralelamente ao do nosso processo de pensamento. Porém, embora a consciência seja baseada em emoção e pensamento, e embora sofra evolução e mudanças com o tempo, embora seja formada de sentimentos dos primeiros estágios e tenha uma expansão que ultrapassa os problemas de Édipo, envolvendo-se em todo tipo de conflitos e preocupações, esse superego, essa parte do nosso eu que contém nossas restrições morais e nossos ideais nasce das primeiras lutas contra paixões sem lei, da nossa submissão interior às leis humanas. 

E se violarmos essas restrições morais ou abandonamos esses ideais, nossa consciência observa, censura, condena. 

E se violamos essas restrições morais ou abandonamos esses ideais, nossa consciência se encarrega de nos de nos fazer sentir culpa. 

Existe, porém a culpa boa e culpa má, a culpa apropriada e a inapropriada. Existe culpa deficiente e culpa excessiva. Algum de nós talvez conheça pessoas incapazes do sentimento de culpa. Mas quase todos nós conhecemos pessoas (e estamos também entre elas) capazes de criar um sentimento de culpa a respeito de quase tudo. 

Eu sou uma dessas pessoas. 
Sinto-me culpada sempre que meus filhos estão infelizes. 
Sinto-me culpada quando morre uma das minhas plantas. 
Sinto-me culpada quando não uso o fio dental depois de comer. 
Sinto-me culpada quando conto a mais leve mentira. 
Sinto-me culpada quando piso deliberadamente num inseto – com exceção de todas as baratas. 
Sinto-me culpada quando uso, para cozinhar, uma porção de manteiga que caiu no chão. 

E como se, se tivesse espaço, eu poderia facilmente relacionar algumas centenas mais de itens genuínos, provocadores de sentimento de culpa, posso dizer que sofro de um sentimento de culpa excessivo e indiscriminado. 

Culpa indiscriminada é também a incapacidade para distinguir pensamentos proibidos de ações proibidas. Assim, desejos maldosos são iguais a atos maldosos. E embora nós, adultos, acreditamos que há muito tempo somos capazes de distinguir um do outro, nossa consciência pode cruelmente nos condenar, não só pelo crime que cometemos, mas também pelo desejo de crime que levamos no coração. E mesmo sabendo que só o desejo não implica o ato, ainda assim nos sentimos culpados. 

Essa falta de discriminação é um dos modos pelos quais demonstramos o excesso de culpa. A punição desproporcional é outro. Pois atos culposos que exigem nada mais do que um “desculpe-me”, uma pancadinha mental no peito pode inspirar atos surpreendentes de autoflagelação: “Eu fiz isso, como pude fazer isso, só um monstro baixo e sem moral podia fazer tal coisa; assim, condeno este criminoso – eu mesmo – à morte”. Essa autopunição excessiva é algo assim como despejar uma xícara cheia de sal no sanduíche de salada de ovo. Ninguém nega que o sanduíche precisa de sal, mas – não tanto. 

Outra forma de excesso pode ser chamada de culpa onipotente, que se baseia na ilusão de controle – a ilusão, por exemplo, de que se tem controle absoluto sobre o bem-estar das pessoas que amamos. Assim, se elas sofrem, fracassam ou ficam doentes física ou mentalmente, temos certeza de que é nossa culpa, de que, se tivéssemos agido de modo diferente, ou melhor, sem dúvida teríamos evitado o sofrimento. 

Um rabino, por exemplo, fala a respeito de suas visitas de pêsames – numa tarde de inverno – a duas famílias que haviam perdido duas mulheres idosas. 

Na primeira casa, o filho disse para o rabino: “Se ao menos eu tivesse mandado minha mãe para Flórida, para longe desta neve, ela estaria viva hoje. Ela morreu por minha culpa”. 

Na segunda casa, o outro filho disse: “Se ao menos eu não tivesse insistido para que minha mãe fosse para a Flórida, ela estaria viva hoje. Aquela longa viagem de avião, a mudança brusca de clima foram demais para ela. Morreu por minha culpa”. 

A questão é a seguinte: acreditando-nos culpados, podemos acreditar nos nossos poderes de controle da vida. Estamos dizendo que preferimos o sentimento de culpa à aceitação de não estarmos com o controle. 

Outros talvez sintam necessidade de acreditar que Alguém lá em cima tem o controle, que coisas terríveis não acontecem sem uma causa, que, se foram atingidos pela tragédia e pela perda devastadora, é porque, de algum modo, as merecemos. São os que não aceitam a ideia de que o sofrimento é aleatório. Ou que os homens maus prosperam enquanto os bons são castigados. Assim, acrescentam ao sofrimento a convicção de que sofrem porque devem sofrer, que seu sofrimento é prova suficiente da sua culpa. 

Uma mulher cuja filha havia estado desesperadamente doente contou-me a espantosa conversa que teve com Deus, um Deus, aliás, no qual ela dizia não acreditar. “Você devia sentir-se envergonhado. Devia mesmo”, a censurou. “Que opressor você se tornou! Se quer punir uma pessoa descrente, pode punir a ela, mas não à filha dela. Pare de atormentar minha filha! Atormente a mim!” 

A analista Selma Fraiberg diz que a consciência saudável produz sentimentos de culpa proporcionais ao ato praticado, que servem pra evitar que esses atos sejam repetidos. “Mas a consciência neurótica”, diz ela, “comporta-se como um quartel da Gestapo no interior da personalidade, procurando impiedosamente ideias perigosas ou potencialmente perigosas, ou qualquer coisa remotamente ligada a elas, e acusando, ameaçando, atormentando numa inquisição interminável, procurando provar a culpa por ofensas ou crimes triviais cometidos nos sonhos. Esses sentimentos de culpa têm o efeito de condenar à prisão toda a personalidade...”. 

São sentimentos excessivos e neuróticos de culpa. 

A culpa neurótica pode ser alimentada por ocorrências dos anos pré-edipianos – pela ansiedade e raiva provocadas por separações anteriores, ou pelas lutas contra os pais. Assim, por exemplo, nossa consciência pode aplicar a punição do fui-abandonada-porque-não-era-boa-mereço-ser-punida. Ou pode condenar severamente aquelas partes do indivíduo que os pais – cujo amor tanto se termia perder – condenava. Pode, ainda, estar carregada com a raiva antes dirigida contra a mãe e o pai, agora vigorosamente dirigida contra o próprio indivíduo. Como me disse um psicanalista: “De modo geral, acredito que tudo aquilo que faz a criança lutar sozinha contra a ansiedade e a raiva a predispõe a repetir a encenação num palco interior – adotando níveis e tipos inadequados de culpa, quando adulto”. 

É um tipo de culpa que nos faz acreditar que, se beijamos alguém, vai crescer cabelo em nossos dentes. E se respondermos mal para nossa mãe, ela terá um enfarte. E se resolvemos fazer o que desejamos desesperadamente há tanto tempo – algo maravilhoso -, não devíamos estar fazendo aquilo. 

E às vezes, infelizmente, como descobriu o paciente fictício e apavorado do Dr. Spielvogel Portnoy, não podemos fazer: 

Não posso fumar, mal posso beber, não peço dinheiro emprestado nem jogo cartas, não posso contar uma mentira sem começar a suar como se estivesse atravessando o Equador. Certo, eu digo ‘foda-se’ o tempo todo, mas pode estar certo, é o máximo do meu sucesso com transgressões... Por que uma pequena turbulência está tão além das minhas possibilidades? Por que o menor desvio das convenções respeitáveis provoca em mim esse inferno interior? Quando, na verdade, eu odeio essas malditas convenções! Quando sei que os tabus são tolices! Doutor, meu médico, o que o senhor acha, VAMOS DEVOLVER O ID AO YID! Por favor, liberte a libido deste bom garoto judeu. Aumente os preços, se precisar – pago qualquer coisa! Mas acabe com essa fuga covarde dos prazeres profundos das trevas! 

Nem todos são tão conscientes quanto Portnoy, ou seu criador, Philip Roth, das inibições morais com as quais vivemos. Podemos conscientemente nos sentir mais livres do que realmente somos. 

Pois um aspecto importante da culpa é o fato que quase sempre trabalhar em nós sem nosso conhecimento, o fato de que podemos sofrer as consequências da culpa inconsciente. 

Conhecemos a sensação da culpa consciente – conhecemos a tensão e a dor -, mas a culpa inconsciente só pode ser conhecida de modo indireto. E um dos sinais que evidenciam a presença da culpa inconsciente é o forte impulso de autopunição, uma necessidade persistente de ser punido ou se punir. 

Os criminosos que deixam pistas incriminadoras (inclusive Nixon, talvez, e suas fitas de Watergate) muitas vezes são levados pela culpa inconsciente. Assim também Dick, que, depois de uma discussão amarga com o pai, bate o carro e se fere gravemente. Ou Rita que, quando o chefe censurou duramente a secretária, pensou: “Ainda bem que é com ela, não comigo” – e então imediatamente paga por isso derrubando chá quente no colo. 

Assim também os amantes do passado, Ellie e Marvin. 

Ellie e Marvin: 
Têm se encontrado secretamente duas vezes por semana 
Durante os últimos seis meses 
Mas não consumaram sua paixão 
Porque 
Embora ambos concordem 
Que a fidelidade conjugal 
Não só é pouco realista como também 
Irrelevante, 
Ela começou a sofrer de enxaquecas e 
Ele começou a ter pontadas agudas 
No peito, e 
Ela ficou com impertigem e 
Ele teve conjuntivite. 

Ellie e Marvin: 
Viajam sessenta quilômetros até lanchonetes distantes 
Em carros separados 
Mas até agora não fizeram nada além de 
Abraços e beijos 
Porque 
Embora ambos concordem 
Que a exclusividade sexual 
É não só adolescente, mas, também 
Retrógrada 
Ela começou a ter colite e 
Ele dores surdas e latejantes 
Nas costas, e 
Ela começou a roer as unhas e 
Ele está fumando outra vez 

Ellie e Marvin: 
Desejam fazer amor durante a tarde 
Num motel 
Mas até agora só tomaram um grande quantidade 
De café 
Porque 
Ele está convencido de que seu telefone tem escuta e 
Ela está convencida de que um homem com jaqueta de couro a 
Está seguindo e 
Ele diz, e se o motel se incendiar 
Ela diz, e se ela falar alto em sonho e 
Ela acha que o marido está agindo com hostilidade suspeita e 
Ele acha que a mulher está agindo com bondade suspeita e 
Ele está sempre ferindo o rosto com a lâmina de fio duplo e 
Ela está sempre prendendo a mão na porta do carro assim 
Embora ambos concordem 
Que o sentimento de culpa não é só neurótico mas também 
Obsoleto 
Concordaram também em 
Desistir 
Dos encontros secretos. 

Entretanto, a culpa inconsciente pode cobrar preços muito mais altos do que a colite, as enxaquecas, as dores nas costas ou a paranoia. Pode insistir numa vida inteira de penitência e de dor. E essa culpa pode ter origem num ato de omissão, num pensamento, que nossa consciência, com sua infinita sabedoria, considera pecaminoso. Assim, a doença da nossa mãe, o divórcio dos nossos pais, nossas invejas e nossos ódios secretos, nossas gratificações sexuais solitárias – qualquer uma dessas coisas, ou todas, podem vir a ser nossa culpa e nossa vergonha. E se o novo irmão ou a nova irmã que não queríamos e que desejávamos que desaparecesse vem a morrer – por doença ou acidente -, podemos nos julgar responsáveis, e – sem saber o que estamos pensando – dizer para nós mesmos: “Por que eu o matei? Por que não o salvei? Por quê? 

E nossa vida pode se chocar nas rochas dessa culpa inconsciente. 

Freud foi o primeiro a observar que os analistas às vezes trabalham com pacientes que resistem ferozmente a qualquer alívio dos próprios sintomas, que parecem se agarrar à dor emocional, prendendo-se a ela porque ela significa a punição que eles cometeram. Entretanto, Freud faz notar que uma neurose resistente a todos os esforços do analista pode desaparecer de repente, se o paciente faz casamento infeliz, perde todo o dinheiro ou fica gravemente doente. “Nesses casos”, escreve Freud, “uma forma de sofrimento é substituída por outra, e vemos que tudo o que importava era a possibilidade de manter uma certa quantidade de sofrimento”. 

Mas às vezes as pessoas são culpadas e devem sofrer, inclusive pessoas como eu e como você. Algumas vezes a culpa é apropriada e boa. Nem toda culpa é neurótica – para ser curada, para ser eliminada por meio da análise. Teríamos uma moral de monstros se isso fosse possível. Mas alguns de nós demonstra certas deficiências na capacidade de sentir culpa. 

Tenho uma amiga chamada Elizabeth que não pode reconhecer a culpa porque, em sua mente, os culpados são fuzilados ao amanhecer. Ela tem de ser perfeita, sem pecado, sem erro. Assim, ela diz: “O carro foi batido”, porque não consegue dizer: “Eu bati com o carro”. Diz também: “Os sentimentos dele foram feridos”, porque não pode aceitar a ideia de ter ferido os sentimentos dele. Na melhor das hipóteses, ela dirá: “Nós esquecemos de comprar as entradas, e agora estão esgotadas”, quando era a única “nós” encarregada de compra-las. E para certos atos mais drásticos – certa vez teve um caso com o melhor amigo do marido -, conseguiu convencer tanto a si mesma quanto ao marido de que ela não tinha culpa, porque ele a havia levado àquilo! 

Elizabeth é perfeitamente capaz de distinguir entre o certo e o errado. Entretanto, não pode acreditar que seja capaz de sentir culpa – e sobreviver. 

Outro tipo de culpa deficiente é demonstrado por pessoas que punem a si mesmas depois de cometer um ato terrível, mas que voltam a cometê-lo várias vezes mais. Pois, embora a consciência diga que o que fazem é errado, e exija um pagamento brutal pelo pecado, o sentimento de culpa não funciona para elas como um sinal de alarme. Serve somente para punir, nunca para prevenir. 

Sabemos que certos criminosos, na verdade, procuram a punição para expiar uma culpa inconsciente. Sabemos que alguns criminosos sofrem de sentimentos de culpa distorcidos, sempre presentes. Existem, entretanto, as chamadas personalidades psicopatas, que parecem demonstrar uma ausência completa de culpa, pessoas cujos atos antissociais e criminosos, cujos repetidos atos de destruição e depravação ocorrem sem nenhuma restrição nem remorso. Esses psicopatas enganam e roubam, mentem e prejudicam, e destroem com extrema impunidade emocional. Esses psicopatas soletram em letras de trinta metros de altura que tipo de mundo teríamos se não existisse a culpa. 

Mas não é preciso ser psicopata para permitir que outra pessoa ou um grupo tome o lugar da nossa consciência individual. Porém, isso pode também levar à culpa deficiente. Pois, quando transferimos para outros nosso senso de responsabilidade moral, podemos nos librar das principais restrições morais. Essa transposição da consciência pode transformar pessoas comuns em grupos de linchamento e operadores de crematórios. E pode levar qualquer pessoa a agir de um modo que, individualmente, ela consideraria impossível. Numa famosa experiência para testar a consciência versus a obediência à autoridade, o psicólogo Stanley Milgran levou algumas pessoas ao laboratório de psicologia da Universidade de Yale, a fim de realizarem – assim foram informados – um estudo sobre a memória e o aprendizado. Foi explicado que se estudaria o impacto da punição sobre o aprendizado, e que, para isso, uma das pessoas designada como “professor” devia administrar um teste de aprendizado a um ‘aluno’ amarrado a uma cadeira na outra sala – e aplicar um choque elétrico cada vez que o “aluno” desse uma resposta errada. Os choques eram executados por meio de uma série de trinta interruptores, que iam do fraco (15 volts) ao severo (450 volts), e o ‘professor’ era instruído para aplicar a cada resposta errada o choque seguinte mais alto. O conflito começou quando o ‘aluno’ passou dos gemidos aos protestos veementes, e depois a gritos de agonia, e o ‘professor’, cada vez mais constrangido, quis para a experiência. Mas cada vez que hesitava a pessoa com autoridade ao seu lado o incentivava a continuar e completar a experiência. E, a despeito da preocupação com o nível de dor que estava sendo infligida, um grande número de ‘professores’ continuou apertando o interruptor até a mais alta voltagem. 

Os professores não sabiam que os alunos eram atores, e que estavam apenas fingindo sentir dor. Pensavam que os choques eram dolorosamente reais. Mas alguns se convenceram de que estavam fazendo aquilo por uma causa nobre – a procura da verdade. E outros se convenceram de que ‘ele foi tão burro e teimoso que receber levar o choque’. Outros ainda, simplesmente, não foram capazes, embora convencidos de que o que faziam era errado, de falar francamente com os orientadores do teste – isto é, desafiar a autoridade. 

Milgran nota que ‘uma explicação generalizada é que os professores que infligiram à vitima o mais alto grau de choque eram monstros, a porção sadística da sociedade. Mas, se consideramos que quase dois terços dos participantes se encaixam nessa categoria colhida entre as classes trabalhadora, executiva e profissional, o argumento perde toda a sua força’. 

É tentador ler sobre essa experiência e imaginar a nós mesmos saindo pela porta, capazes de distinguir o certo do errado e de agir ciência teria prevalecido. É tentador pensar que, submetidos ao teste, seríamos contados entre os moralmente puros. E alguns de nós realmente o seríamos. E alguns de nós fracassaríamos. Mas nós todos, durante nossa vida, praticamos atos que sabemos ser moralmente errados. E quando isso acontece, a resposta saudável é o sentimento de culpa. 

A culpa saudável é adequada – em quantidade e qualidade – ao ato. A culpa saudável leva ao remorso, mas não ao ódio por si isolar um vasto campo de nossas paixões ou prazeres. 

Precisamos reconhecer que fizemos algo moralmente errado. 
Precisamos conhecer e aceitar nossa culpa. 

O filósofo Martin Buber, consciente dessa necessidade, nos diz que ‘existe a culpa real’. Que há valor no ‘coração sentido que censura’, e que a reparação, a reconciliação, a renovação exigem uma consciência ‘que não foge da visão das profundezas, e que quando censura procura o meio para atravessá-las...’ 

Aparentemente, conhecemos melhor as partes proibitivas da nossa consciência que limitam os prazeres e as alegrias, as partes que estão sempre atentas para nos julgar, condenar e mobilizar o sentimento de culpa. Mas nossa consciência contém também nosso ego ideal – nossos valores e altas aspirações, as partes que falam aos nossos ‘deve-ser-feito’ e não aos nossos ‘não-deve-ser-feito’. Outra tarefa da consciência consiste em dizer ‘muito bem’ e ‘fez muito bem’, encorajando, aprovando, elogiando recompensando-nos, e que nos ama por conseguir, ou procurar alcançar, esse ego ideal. 

Nosso ego ideal é composto pelas visões mais otimistas e esperançosas do nosso eu. O ego ideal compõe-se dos mais nobres objetivos. E, embora seja um sonho impossível que jamais poderá se realizar, o fato de procuramos alcança-lo nos dá uma profunda sensação de bem-estar. Nosso ego ideal é precioso para nós, porque compensa uma perda da nossa primeira infância, a perda da imagem do eu como algo perfeito e completo, a perda da maior parte do iluminado e infantil narcisismo do não-sou-maravilhoso, ao qual tivemos de renunciar em face da realidade. Modificado e remodelado em objetivos éticos e padrões de moral, e numa visão do melhor que podemos ser. Nosso sonho de perfeição continua vivo – nosso narcisismo perdido continua vivo no nosso ego ideal. 

É verdade que sentimos culpa quando não alcançamos o ego ideal, ou quando ultrapassamos nossas restrições morais. É verdade acreditar no ‘vale-tudo’ podemos continuar nosso caminho alegremente – sem culpa. Um lobo perdoado em sua carne. Uma abelha inocente em sua copulação. Algo além dos limites da humanidade.

Judith Viorst


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Ainda faltam alguns capítulos... 


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