quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

QUARTO DE DESPEJO – Diário de uma favelada


Que obra é esta? 
Que lirismo!!!

A autora consegue nos mostrar uma realidade triste, fria, cruel,

porém, uma leveza que somente os 'grandes' mestres da literatura
conseguem plainar entre as palavras... 

A cada dia relatado é uma aventura, uma curiosidade.

É uma loucura! Não dá vontade de parar de ler e saber.

Estou fascinada com Carolina.

Com as palavras de Carolina.
Literalmente estou 'arriada'!!!

Roberta Carrilho





Um pouco mais sobre Carolina Maria de Jesus


Quarto de despejo foi lançado pela Livraria Francisco Alves em agosto de 1960 e editado oito vezes no mesmo ano; mais de 70 mil exemplares foram vendidos na época. Para se ter uma ideia do sucesso, para uma tiragem então ser considerada bem-sucedida, era preciso alcançar a margem de, aproximadamente, quatro mil exemplares.

Nos cinco anos seguintes, Quarto de despejo foi traduzido para 14 idiomas e alcançou mais de 40 países, como Dinamarca, Holanda, Argentina, França, Alemanha, Suécia, Itália, Tchecoslováquia, Romênia, Inglaterra, Estados Unidos, Rússia, Japão, Polônia, Hungria e Cuba.



Síntese da obra

Quarto de despejo é um relato de fatos verídicos vivenciados ou presenciados pela autora, que faz questão de registrá-los quase que diariamente. Em seu diário, Carolina Maria de Jesus descreve a favela do Canindé, as pessoas e o tipo de vida que levam. Relata as brigas constantes entre marido, mulher e vizinhos, a fome, as dificuldades para se obter comida, as doenças a que estão sujeitos os moradores da favela, seus hábitos e costumes, as mortes, o suicídio, a presença constante da miséria de uma sociedade marginalizada e esquecida pelos governantes.

“15 de julho de 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela.”

Assim tem início o diário de Carolina, que terminará em 1º de janeiro de 1960:

“1.º de janeiro de 1960. Levantei as 5 horas e fui carregar água.”

Ao longo desses anos, a autora registra a vida na favela, a sua luta diária contra a fome, o esforço para criar com dignidade os filhos José Carlos, João e Vera Eunice. A fome é uma constante ao longo da obra:

"Como é horrível ver um filho comer e perguntar: Tem mais? Esta palavra tem mais fica oscilando do cérebro de uma mãe que olha a panela e não tem mais. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: - Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome! Eu estou triste porque não tenho nada para comer.” 

Quando consegue algum alimento, a narradora reflete sobre sua condição de pessoa expulsa do mundo humano:

“Quando eu levava feijão pensava: hoje eu estou parecendo gente bem, vou cozinhar feijão. Parece até um sonho!”

A miséria que presencia é tão chocante que Carolina acha que alguém poderia não acreditar no que conta:

“.... Há existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as misérias são reais.”

Com grande senso crítico, a autora destaca as visitas do padre à favela:

“De manhã o padre veio dizer missa. Ontem ele veio com o carro capela e disse aos favelados que eles precisam ter filhos. Penso: porque há de ser o pobre quem há de ter filhos ¬ se filhos de pobre tem que ser operário? (...) Para o senhor vigário, os filhos de pobre criam só com pão. Não vestem e não calçam.”

O contraste entre a favela e a cidade é percebido com acuidade e senso crítico por Carolina:

“Quando eu vou na cidade tenho a impressão de que estou no paraíso. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas.”

Fatos corriqueiros como brigas entre marido e mulher, entre as mulheres e os bêbados, a presença da Rádio Patrulha, mortes por intoxicação com alimentos putrefatos são narrados com detalhes por Carolina:

“Eu já estou tão habituada a ver brigas que já não impressiono. Despertei com um bate-fundo perto da janela. Era a Ida e a Amália. A briga começou lá na Leila. Elas não respeitam nem a extinta. O Joaquim interviu pedindo para respeitar o corpo. Elas foram brigar na rua.”

Ao olhar atento da narradora nada escapa:

“.... Nas favelas, as jovens de 15 anos permanecem até a gora que elas querem. Mescla-se com as meretrizes, contam suas aventuras [...] Há os que trabalham. E há os que levam a vida a torto e a direito.As pessoas de mais idade trabalham, os jovens é que renegam o trabalho. Tem as mães, que catam frutas e legumes nas feiras. Tem as igrejas que dá pão.”

Sempre em atrito com os vizinhos por causa dos filhos, Carolina diz:

“Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos.”

Carolina demonstra ser uma pessoa exatamente atualizada em relação ao que se passa na vida política do país, o que se comprova pelas constantes referências aos políticos em destaque na época, como Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Adhemar de Barros e Juscelino Kubitschek. A exploração da boa-fé do povo pelos políticos na época de eleições, as visitas dos candidatos à favela, os pequenos agrados e as promessas não cumpridas são registradas pela narradora de forma crítica e consciente.

“.... Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na política para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olho o povo com os olhos semicerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade.”

Sobre sua obra, Carolina afirma:

"Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade."

Outros trechos

22 de julho de 1955

... Eu gosto de ficar dentro de casa, com as portas fechadas. Não gosto de ficar nas esquinas conversando. Gosto de ficar sozinha e lendo. Ou escrevendo! Virei na rua Frei Antonio Galvão. Quase não tinha papel.(...) Enchi dois sacos na rua Alfredo Maia. Levei um até ao ponto e depois voltei para levar outro. Percorri outras ruas. Conversei um pouco com o senhor João Pedro. Fui na casa de uma preta levar umas latas que ela tinha pedido. Latas grandes para plantar flores. Fiquei conhecendo uma pretinha muito limpinha que falava muito bem. Disse ser costureira, mas não gostava da profiss. E que admirava-me. Catar papel e cantar.
Eu sou muito alegre. Todas as manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer. De manhã eu estou sempre alegre. A primeira coisa que faço é abrir a janela e contemplar o espaço.

7 de junho de 1958

Os meninos tomaram café e foram a aula. Eles estão alegres porque hoje teve café. Só quem passa fome é que dá valor a comida.
Eu e Vera fomos catar papel. Passei no Frigorifico para pegar lingüiça. Contei 9 mulheres na fila. Eu tenho mania de observar tudo, contar tudo, marcar os fatos.
Encontrei muito papel nas ruas. Ganhei 20 cruzeiros. Fui no bar tomar uma média. Uma para mim e outra para a Vera. Gastei 11 cruzeiros. Fiquei catando papel até as 11 e meia. Ganhei 50 cruzeiros.
... Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a Historia do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da patria. Então eu dizia para a minha mãe:
- Porque a senhora não faz eu virar homem?
Ela dizia:
- Se você passar por debaixo do arco-íris você vira homem.
Quando o arco-iris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava sempre distanciando. Igual os politicos distantes do povo. Eu cançava e sentava. Depois começava a chorar. Mas o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para a mamãe:
- O arco-iris foge de mim.
... Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituiram os corvos. (...)

9 de junho de 1958

... Eu já estava deitada quando ouvi as vozes das crianças anunciando que estavam passando cinema na rua. Não acreditei no que ouvia. Resolvi ir ver. Era a Secretaria da Saude. Veio passar um filme para os favelados ver como é que o caramujo transmite a doença anêmica. Para não usar as aguas do rio. Que as larvas desenvolve-se nas aguas(...) Até a agua... que em vez de nos auxiliar, nos contamina. Nem o ar que respiramos, não é puro, porque jogam lixo aqui na favela.
Mandaram os favelados fazer mictorios.


11 de junho de 1958

... Já faz seis meses que eu não pago a agua. 25 cruzeiros por mês. E por falar na agua, o que eu não gosto e tenho pavor é de ir buscar agua. Quando as mulheres aglomeram na torneira, enquanto esperam a sua vez para encher a lata vai falando de tudo e de todos. (...) Fiz o café e fui carregar agua. Olhei o céu, a estrela Dalva já estva no céu. Como é horrível pisar na lama. As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginarios (...).



13 de junho de 1958

... Vesti as crianças e elas foram para a escola. Eu fui catar papel. No frigorifico vi uma mocinha comendo salsichas do lixo (...) Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas tubarões mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista. A lentilha está a 100 cruzeiros o quilo. Um fato que alegrou-me imensamente. Eu dancei, cantei e pulei. E agradeci o rei dos juízes que é Deus. Foi um janeiro quando as águas invadiu os armazens e estragou os alimentos. Bem feito. Em vez de vender barato, guarda esperando alta de preços: Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhau, queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes que não trabalham e passam bem.



JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de uma favelada.

São Paulo: Ática, 1993. Série Sinal Aberto.

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