foto by Sebastião Salgado |
«Foi então que deu na praia, artes do mar, mistério incompreensível, o corpo morto de um afogado, calado. Tinha de ser enterrado. E o costume era que as mulheres preparassem os cadáveres para a sepultura. E foi isto que fizeram, os homens de fora, por medo da morte, as mulheres de dentro, limpando aquele corpo das algas e das coisas verdes do mar. E o silêncio era grande porque sobre um morto desconhecido não há o que falar. Até que uma delas notou que ele era alto demais, e comentou que se ele tivesse vivido na aldeia teria de ter abaixado sempre a cabeça para entrar em suas casas. No que todas concordaram. Foi então que uma outra olhou para a sua boca silenciosa, e perguntou a todas sobre as palavras que dela teriam saído. Seriam como o barulho das ondas ou como o sussurro da brisa? E os seus corpos se arrepiaram, só de pensar no seu sopro quente aos seus ouvidos... E sorriram. E se ouviu então a voz de uma terceira que falava sobre aquelas mãos inertes, tão grandes... Teriam sido ternas? Teriam sabido agradar? Teriam sabido abraçar? E todas riram que riram. Os maridos, de fora, perceberam que o corpo morto do afogado tinha um poder sobre o corpo vivo de suas mulheres que nem mesmo eles possuíam. Quem estaria mais morto? E tiveram inveja do morto com quem sonhavam e seus corpos ficaram mais altos, seus rostos, mais francos, suas mãos, mais bonitas. Finalmente enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi a mesma.»
Rubem Alves
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