quarta-feira, 20 de outubro de 2010

RELAÇÕES ESTÉTICAS - Márcia Tiburi

Márcia Tiburi

O que esperamos quando vamos ao cinema? Que o filme seja bom, nos divirta, nos ensine, nos comova. Esperamos uma experiência estética, ou seja, um conjunto de sensações com significado. Queremos sentir, mas não basta, queremos também entender. O prazer com um filme é algo que surge desta combinação entre sensibilidade e entendimento. Sem este último não existe prazer. Após a projeção do filme usamos o veredicto espontâneo “gostei” ou “não gostei” para definir se o filme é bom ou não. Se vimos o filme acompanhados pode até surgir alguma discussão em torno das razões e emoções de tais juízos, mas em geral cada um se apega ao próprio prazer sentido para justificar seu julgamento. É claro que julgamentos, sejam de críticos ou de pessoas em geral não fazem de um filme melhor ou pior. Mas precisamos disso na tentativa de entender o que vimos. Mas a experiência estética é ainda mais que isso.

Além do julgamento que advém do prazer ou desprazer, a experiência estética é também o efeito que uma obra produz em nós. A diferença desta forma de experiência estética com as demais é que nos tornamos, por meio delas, mais atentos e sensíveis, ou mais desatentos e fechados ao mundo que habitamos. Olhando bem, a experiência estética faz parte de todos os aspectos da nossa vida.

É curioso como este nosso desejo de julgamento se aplica também às relações que temos com seres humanos. Raramente alguém deseja uma experiência que não seja prazerosa com uma pessoa, seja amigo, seja colega, seja um amor. Não temos relações éticas com as pessoas porque nos apegamos, sobretudo, a percepções estéticas. Queremos ser convencidos a todo momento de que aquela pessoa com quem vivemos ou partilhamos momentos é alguém que nos agrada. Deste saber bastante banal é que as pessoas tiraram a idéia de que é preciso agradar para serem queridas e desejadas. Se sentimos prazer com alguém somos imediatamente convencidos de seu significado, de sua importância. Assim também queremos ser vistos. O bom arranjo entre forma e conteúdo, entre aparência física e discurso, nos faz ver a pessoa como uma obra de arte, um filme bem feito, denso e curioso a passar diante de nossos olhos.

A cultura da superficialidade

Tanto num filme de terror ou numa comédia banal, quanto numa película mais elaborada intelectualmente, o que queremos é que algo nos dê prazer. Do mesmo modo, queremos uma pessoa que nos entretenha ou nos agrade. O que não ponderamos é que arte nem sempre agrada. Muitas vezes ela provoca, como nas obras de arte contemporânea, uma abertura ao insuportável. Por isso, tantas exigem de nós que nos tornemos intérpretes sérios, cuidadosos e atentos, sob pena de simplesmente fugirmos das experiências propostas. Do mesmo modo, as pessoas são bem mais complexas do que o que delas podemos saber. Por isso também muitos preferem fugir dos que conhecem, mas também dos que não conhecem. Porém, este tipo de atitude não nos deixa longe de contradições. Junto deste comportamento hoje em dia comum, cresce a queixa da solidão e da dificuldade de relacionamento.

Quem está disposto a realmente respeitar a novidade aberta pelo outro? Em geral as pessoas só querem das outras a superfície e, por outro lado, quando a cultura da superficialidade vira regra, queixam-se de que não exista nada mais sob a máscara. Mudar de percepção seria como aprender a assistir filmes intelectualmente mais complexos. Ou livros mais exigentes.

O prazer de não pensar

A idéia da beleza sempre dependeu deste ideal do prazer. Para muitos não há como ver sentido longe dele. Kant falava da beleza como aquilo que agrada sem que precisemos pensar por que agrada. Coisas sem significado não podem agradar. Ele mesmo percebeu que há muita coisa que não produz um prazer imediatamente agradável, mas mesmo assim funciona aos sentidos humanos. Kant, que não entendia de arte, pensava no belo da natureza. Belas eram as mulheres, as paisagens tranqüilas com riacho e flores. Pensava, porém, no encanto estranho que sentimos com as tempestades de raios ou a visão do imenso deserto, do mar aberto. Explicou isto pelo sentimento do sublime, pelo qual entendia uma mistura de prazer com desprazer em que o significado da coisa vista jamais era plenamente alcançado. O sentimento do sublime mais do que a sensação de algo agradável provocaria o respeito. Por isso justificava que a natureza dos homens era nobre, enquanto a das mulheres era bela. Aqueles deviam motivar o respeito, enquanto estas apenas o agrado.

Tudo isso no mostra o quão delicado é julgar e emitir juízos sobre as coisas e as pessoas. Infelizmente vivemos uma cultura da leviandade em relação às interpretações. E tudo isso porque não somos bons leitores do que vemos, do que ouvimos, do que nos dizem. Certamente somos também desatentos à nossas próprias opiniões. Contentamo-nos em gostar e desgostar como se isso fosse a base legítima de uma relação na ordem pública, onde se exigem argumentos tantos quando é o caso de colocar uma novela no ar, uma exposição de pinturas ou um filme em cartaz. Interpretamos a vida com base em nossos pré-conceitos, raramente questionando os reais motivos que nos impelem a dizer isto ou aquilo de algo ou de uma pessoa. Raramente temos atenção ao que realmente se dá à nossa volta. As obras de arte hoje em dia servem para nos ensinar a atenção à nossa própria interpretação. Neste sentido elas nos ensinam a cuidar de todo o campo de nossas relações. Elas exigem que nos tornemos atentos. Talvez quando formos atentos, possamos

Publicado em Vida Simples em 2008.



Estou a cada dia mais encantada com a dialéctica desta incrível escritora-filosofa, Márcia Tiburi. Tenho lido alguns ensaios, artigos, que encontro aqui ou acolá na rede. Chego a coçar de vontade de ler os livros que compõem sua trilogia sobre a intimidade. Devem chegar semana que vem. Não vejo a hora!!!
Roberta Carrilho


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