domingo, 6 de abril de 2014

RELATO DO FILHO DE UM ESQUIZOFRÊNICO postado por Dr. Deyvus Rocha



(Texto escrito por Saulo Szinkaruk Barbosa, publicado na edição 90 da Revista Piauí, de março de 2014)

Era um ritual que Roberto repetia com frequência. Vestia meias grossas, calças de lã, camiseta, camisa, pulôver de gola em V e sobretudo. Deitava-se sobre a colcha de chenile que cobria a cama feita. Cruzava as mãos sobre o peito e assim permanecia. Totalmente imóvel, não fossem os olhos a perscrutar ansiosos o teto do quarto, como quem tenta identificar com a visão o barulho que os ouvidos estão esperando. Quando sua mulher perguntava o que estava fazendo, a resposta vinha firme, com convicção: “Estou pronto para a guerra.”

E não adiantava ela lhe dizer que não havia guerra nenhuma, ou que era verão e tanta roupa só podia fazer mal. Porque Roberto Oliveira Barbosa, meu pai, era esquizofrênico.

Hoje, dizer isso assim, com todas as letras, é até fácil. Mas durante os primeiros vinte anos da minha vida foi impossível. Em parte porque, embora desde cedo tivessem me dito que meu pai era doente e que eu precisava entender, ninguém nunca me contou o que ele tinha, nem se algum dia se curaria. Não que minha família fosse relapsa comigo ou com meu irmão mais novo, ignorando as consequências que a esquizofrenia do nosso pai poderia nos causar. Apenas foi o jeito que minha mãe e meus avós paternos encontraram para lidar com a situação. Um padrão de comportamento que desde cedo aprendi a replicar, e que de certo modo explica por que demorei tanto para encarar os fatos: a gente ia levando, tentando deixar tudo o mais normal possível, contornando as crises da doença com paciência, silenciando e baixando os olhos quando os delírios incluíam acusações descabidas ou frases que doíam, e nunca, nunca discutíamos o problema depois que o pior passava. Era no silêncio cúmplice e na rotina que se restabelecia – um almoço sem incidentes, uma tarde de chimarrão e conversa fiada – que encontrávamos o equilíbrio para aguentar firme e seguir adiante.

É verdade que as crises mais intensas, ao que me lembre, eram esparsas. A medicação mantinha meu pai consideravelmente lúcido e coerente boa parte do tempo, ainda que ele não fosse capaz de trabalhar ou se envolver em alguma tarefa que exigisse comprometimento. Quem não soubesse da esquizofrenia podia facilmente pensar que se tratava de um sujeito na plenitude das suas faculdades mentais. Um pouco calado, talvez, mas nada além disso. Era preciso um contato mais demorado para perceber as distorções do cérebro doente, que em geral surgiam em raciocínios e conclusões estabelecidas a partir de lógicas muito particulares.

Lembro uma ocasião em que estávamos almoçando na casa dos meus avós e meu pai, do nada, sugeriu seriamente que todos rompêssemos com um parente distante. Não fizemos nenhuma pergunta – conhecíamos exatamente aquele tipo de situação. Ele explicou mesmo assim. Disse que certa vez estava andando na rua com algumas pessoas e que, quando uma delas mencionou o tal parente, ele tropeçou. Era evidente, portanto, que o sujeito não era boa pessoa e que devíamos evitá-lo. Situações assim eram bastante frequentes, tanto que todos sabíamos que o melhor era ignorar, logo ele esqueceria e tudo seguiria seu curso.

Sem a medicação, porém, ou quando por algum motivo ela era trocada ou tinha a dosagem ajustada, a coisa mudava de figura. Aí, sim, precisávamos tratar com uma pessoa sem nenhuma capacidade de discernimento. Felizmente meu pai não era violento ou autodestrutivo. Suas atitudes nas crises mais fortes eram apenas excêntricas e embaraçosas: cobria os móveis da casa com lençóis porque achava que eles estavam com frio; andava pelas ruas a pé como se estivesse de carro, respeitando as mãos do trânsito; conversava efusivamente sozinho, com o cenho franzido e as mãos agitadas; elucubrava projetos sem sentido. Certa feita cismou que deveria trocar seu nome para Vitoffbar, sigla que criou juntando as primeiras letras de todos os sobrenomes da árvore genealógica da família.

Mesmo assim, e por mais que as crises me envergonhassem, nunca procurei esconder meu pai. Meus amigos da rua e colegas de colégio frequentavam minha casa. Quando éramos mais novos, eles faziam perguntas: “O que teu pai faz?”, “Ele está de férias?”, “Por que teu pai está em casa a essa hora?” Eu respondia que ele cuidava dos negócios da família; meu irmão preferia dizer que ele era advogado. Depois que entramos na adolescência, as perguntas cessaram. Aos poucos meus amigos compreenderam a situação, ou foram alertados por seus pais. De mim, nunca nenhum deles ouviu nada. Eu ainda levaria muitos anos para ser capaz de falar sobre o assunto com alguém.

A esquizofrenia é uma doença que a medicina tenta entender. Atualmente, acredita-se que sua causa esteja numa combinação de fatores genéticos e comportamentais, como o ambiente familiar e experiências traumáticas. Na minha família paterna, o histórico de transtornos mentais é considerável, se bem que mal documentado e raramente diagnosticado. Já ouvi histórias sobre meu bisavô, avô do meu pai, ser “meio esquisito”, mas daí a saber do que exatamente ele sofria vai uma longa distância. São lembranças puídas pelo tempo, de uma época em que o máximo de precisão a que o médico chegava era afirmar que o paciente “sofria dos nervos”. Ouvi também relatos de primos cujas vidas foram de alguma forma desviadas do curso normal por algum tipo de impedimento mental.

A história do meu pai segue o que a literatura médica define como padrão da esquizofrenia. A vida corre sem incidentes até o início da fase adulta, quando se iniciam as crises. Após uma infância e adolescência normais, meu pai saiu de Santo Ângelo, município com pouco mais de 70 mil habitantes onde havia crescido, para fazer faculdade em Santa Maria, uma cidade universitária agitada, quase quatro vezes maior que sua terra natal. Era começo dos anos 70 e ele tinha 18 anos. Foi quando ocorreram as primeiras manifestações.

Há quem credite a explosão do gene adormecido ao rompimento com um ambiente familiar superprotetor. Outros atribuem ao abuso de drogas – comportamento que a medicina considera um gatilho possível – dos primeiros semestres na universidade. Minha avó, que até hoje rejeita o diagnóstico oficial, especula que tudo começou quando ele bateu a cabeça durante uma viagem de ônibus, num solavanco mais vigoroso do veículo. O que se sabe ao certo é o que aconteceu a partir daí: vieram crises e mais crises. Meu pai faltava a boa parte das aulas. Sumia por dias a fio sem dar notícias, e quando voltava aparecia com os olhos esbugalhados, tremendo e dizendo coisas sem sentido. Era uma visão assustadora para minha família. Um terror amplificado pela ignorância de não fazer ideia do que estava acontecendo com ele, tão normal e estudioso até pouco tempo. Às crises se intercalavam tentativas de retomada da vida. Foram três faculdades iniciadas na Universidade Federal de Santa Maria, nenhuma jamais concluída; um período no curso de formação de tenentes do Exército; um punhado de empregos com amigos da família. Alguns anos mais tarde, de volta a Santo Ângelo, ele ainda tentou estudar direito, mas não concluiu o curso. Foi seu derradeiro esforço. Pelos anos seguintes, meus pais, meu irmão e eu vivemos da renda de imóveis da família, administrados com surpreendente tino por meu pai.

Ele só não desistiu da música. Tocava violão. Cresci ouvindo-o dedilhar Beatles, Roberto Carlos e Renato e Seus Blue Caps. Cantava muito bem e sabia ser o centro das atenções. As festas de família em que empunhava o instrumento e soltava a voz sempre me pareceram ser seus momentos mais felizes, quando de alguma forma ele conseguia fazer com que as coisas dessem certo.

Ainda assim, está ligada à música uma das lembranças mais vívidas que tenho da sua esquizofrenia. Eu era adolescente e estava aprendendo a tocar violão. Já conseguia executar algumas canções, porém era incapaz de afinar o instrumento. Pedi a meu pai que o fizesse. Ele sentou ao meu lado, na cama, e começou a arpejar as cordas com o polegar direito, enquanto girava as tarraxas com a outra mão. Estranhei os gestos dele, tocando todas as cordas abertas, isto é, sem usar a mão esquerda. Em geral, tocam-se as cordas aos pares na quinta casa do braço, descendo do bordão até a prima, e afinando uma pela outra (quinta pela sexta, quarta pela quinta etc.). Mas aquele era um momento tão raro – nós dois compartilhando alguma coisa – que não prestei muita atenção ao método. Fiquei apenas ouvindo o que meu pai me dizia enquanto ajustava o instrumento.

Ele tinha acabado de tomar banho e cheirava a sabonete, um odor ácido e frutado. Falava de teoria e técnica musical. A formação dos acordes, o arpejo, o dedilhado. Um pai ensinando algo ao filho, um momento tão banal, tão comum, e justamente por isso tão especial para mim. Quando ele me entregou o instrumento, armei um dó maior com a mão esquerda e toquei confiante. O violão ecoou um som tão caótico que até meu ouvido inexperiente percebeu que havia algo muito errado. Testei um lá maior. De novo, dissonância. Fiquei atordoado. Eu já tinha visto meu pai afinar um violão dúzias de vezes. E no entanto ele havia passado dez minutos regulando aquelas cordas que agora pareciam refletir a mente dele: um todo desajustado de onde é impossível extrair alguma coerência. Nem mesmo quando toquei os acordes e produzi sons indecifráveis ele percebeu o que estava acontecendo.

Em segundos, vi perplexo ruir nosso momento pai e filho. Eu sabia que não ia conseguir falar nada para ele. Temia o terreno em que pisaríamos se eu dissesse o óbvio: “Pai, não tá afinado.” Eu não seria capaz de esfacelar a normalidade daquele momento, ainda que ela fosse só aparente e, afinal, ilusória. Meu pai se levantou e saiu. Fiquei sozinho na cama, com um violão desafinado e um cheiro de sabonete que nunca mais esqueci.

Meu irmão e eu gostávamos de ir aos jogos do Passo Fundo, time de futebol da cidade onde nossa família, incluindo meus avós paternos, foi morar no começo dos anos 90. Um dia, para nossa grande surpresa, o pai quis ir junto. Lembro como meu irmão, que na época devia ter uns 9, 10 anos, ficou empolgado. Em geral quem nos acompanhava em qualquer atividade, dos deveres da escola até comprar doces na esquina, era nossa mãe ou avô, que sempre foi muito próximo e fez o possível para suprir o papel da figura masculina na nossa criação. Aos jogos, íamos somente meu irmão e eu. Mas naquele dia ele foi com a gente. Chegamos ao estádio e nos sentamos no concreto morno da arquibancada, alinhados com o meio de campo. O dia estava quente e não nos importamos com o sol que nos fazia apertar as pálpebras. Era um momento estranho. Feliz mas estranho, pois não tínhamos muita intimidade com nosso pai. Como ele varava as madrugadas e dormia boa parte do dia, nossas rotinas quase não se encontravam.

Acho que mal haviam se passado quinze minutos de jogo quando ele disse que queria ir embora. Ficamos sem reação. Ele tentava se desculpar, dizendo que infelizmente não tinha como seguir ali com a gente. Começou a descer a arquibancada, sem olhar para trás, a cada passo ficando menor aos nossos olhos. Ele já ia longe quando meu irmão conseguiu expressar a raiva que estava sentindo. Xingava e amaldiçoava com a voz embargada, segurando as lágrimas como quem sabe que negar o choro a alguém às vezes é a única vingança possível. Não senti nada. Talvez por estar acostumado a jamais criar expectativas positivas referentes a algo que envolvesse meu pai, como uma criança que sabe que seu balão sempre vai estourar antes de encher. Ou, por ser três anos mais velho, eu tivesse maturidade suficiente para entender que havia uma doença maldita dentro da cabeça dele, um parasita voraz que envenenava e consumia seu cérebro, impedindo que ele fizesse o que mais queria: ser um pai de verdade.

É exatamente aí que está o sofrimento mais devastador dessa doença: não existe nenhum parasita. Nunca houve uma separação entre o cérebro sadio e o bicho que o contaminava. A esquizofrenia e a mente do meu pai eram uma coisa só, indissociáveis. E por isso eu nunca soube, nem nunca vou saber – de tudo que ele me disse e fez, de tudo que deixou de me dizer e fazer –, quando ele era ele mesmo e quando estava sob influência da doença. No dia em que disse que sentia muito orgulho de mim, sentia mesmo isso ou estava apenas tendo um delírio, imaginando um filho que não era o dele? Como posso considerar verdadeira e sincera uma lembrança se desde pequeno fui ensinado a julgar seus atos como frutos de uma mente doente?

No outono de 2003, minha mãe saiu de casa. Eu soube por telefone – àquela altura, já estava na faculdade em Porto Alegre havia quase dois anos. Nessa mesma ligação, pela primeira vez alguém me disse alguma coisa concreta sobre a doença. “Teu pai tem esquizofrenia. Me sinto muito infeliz e sozinha”, ela falou. A sinceridade brutal foi a forma que encontrou para tourear o medo de que meu irmão e eu ficássemos contra ela. Isso não aconteceu. Meu pai não era culpado da doença, tampouco minha mãe. Na verdade, o que senti depois daquele telefonema foi uma enorme gratidão por ela ter suportado tanto tempo. Por ter esperado até que ficássemos adultos para ir atrás da sua felicidade. Minha mãe casou aos 19 anos, grávida de mim. Jovem e ingênua, achava que o comportamento excêntrico do meu pai era resultado das muitas horas de estudo. Nunca lhe passou pela cabeça perguntar por que aquele homem dez anos mais velho não conseguia concluir nenhuma faculdade. Como meus avós jamais se imiscuíram na vida sentimental do filho, minha mãe casou sem saber que meu pai era esquizofrênico.

Pouco mais de um mês depois da partida da minha mãe, meu pai teve um mal-estar estomacal violento. A suspeita primeiro recaiu sobre uma lata de pêssegos em calda aberta havia muitos dias. Medicado, ele melhorou, mas ao longo das semanas seguintes as indisposições foram ficando mais frequentes, até que o médico pediu exames mais detalhados. Só então o diagnóstico surgiu: um tumor no intestino, grande o suficiente para praticamente bloquear
o processo de digestão.

Meu pai foi operado para remover o tumor e passou por um período de quimioterapia. Mudou-se para a casa dos meus avós, emagreceu, parou de fumar. Não perdeu o cabelo, mas padeceu os enjoos do tratamento. Só fui visitá-lo depois de algumas semanas. De algum modo, eu tinha construído uma redoma em Porto Alegre, um espaço onde a fugacidade do convívio com meu pai me desobrigava de fingir que a doença não existia. Foi difícil destruir esse pequeno ecossistema de ilusão e encarar que agora eram dois os males a devastar a vida daquele homem.

Daquela época data um texto em que ele relata uma série de revezes na família. Com sua caligrafia impecável, ele narra a partida da minha mãe, a descoberta e o tratamento do câncer, entre incidentes menores como uma batida de carro em que minha avó quebrou o braço, uma mordida que meu avô levou da cachorrinha da família etc. No fim, conclui: “Não sei por que tanta perseguição.”

Guardo esse texto comigo. Sempre que o leio, me lembro de uma cena de Os Leões de Okavango, documentário do canal National Geographic sobre uma família de leões que perde o patriarca em uma disputa territorial com um grupo da mesma espécie e é forçada a procurar outro lugar para viver. Sem parceiro e com três filhotes pequenos, a leoa Ma di Tau foge sem rumo. Poucas horas depois, já viu um dos rebentos ser devorado por um crocodilo, está exausta, sem abrigo nem comida para dar aos dois sobreviventes, e ainda precisa permanecer vigilante o tempo todo. Nesse momento, ouvimos a voz grave do ator Jeremy Irons, narrador do filme, anunciar mais ou menos o seguinte: “E mais um dia amanhece no delta do rio Okavango, totalmente alheio ao sofrimento de Ma di Tau.” Não importa se é Ma di Tau, meu pai, eu. A natureza não dá mole: não tem piedade ou comiseração, não avalia quanto sofrimento cada um pode suportar. Depois de um dia que se foi chega outro, e depois mais outro e ainda outro, independentemente da nossa vontade de que o tempo retorne, ou congele, ou deixe de acontecer.

Em algum momento no começo dos anos 90, meu pai decidiu suspender a medicação. Minha mãe, ciente de que a vida normal seria inviável, passou a moer o comprimido de Haldol e misturar no suco que servia a ele no almoço. Nós, crianças ainda, não percebíamos como era curioso ele ter um copo separado, em que ninguém podia tocar. Minha mãe conta que quando meu irmão ou eu reclamávamos que o suco estava muito azedo, ou aguado, meu pai gentilmente oferecia o dele. Eram pequenos momentos de desespero para ela. Para acabar com situações assim, um dia ela nos contou o que vinha acontecendo nos últimos meses. Enfatizou que sob hipótese alguma deveríamos beber um gole que fosse, mesmo que o pai insistisse. Mais alguns meses se passaram e ela nos chamou para dizer que revelaria a ele o truque do remédio no suco. Estava nervosa com a conversa, com a possível reação dele. Para alívio de todos, ele entendeu, agradeceu e voltou a se medicar normalmente.

Foi também nessa época que meu irmão e eu passamos por uma avaliação com uma psicóloga. Íamos ao consultório e fazíamos desenhos, jogávamos ou simplesmente conversávamos. Ela concluiu que estava tudo bem com a gente, não identificou nenhum traço ou propensão para a esquizofrenia.

Apesar de tudo, tive uma infância feliz. Meu irmão e eu crescemos muito próximos, com muitos amigos. Meus avós paternos foram presenças constantes – era para a casa deles que eu ia todos os finais de semana e durante as férias. Minha mãe sempre foi incrível. Até hoje adoro o Natal, certamente pelas boas lembranças. Não acho que a doença do meu pai tenha feito a minha vida difícil ou que o sofrimento tenha me trazido uma sabedoria especial.

Três anos depois da cirurgia para retirar o tumor, meu pai começou a reclamar de fortes dores nas pernas. Como as pontadas irradiavam da coluna em direção aos pés, o médico logo diagnosticou um problema no nervo ciático. Ao longo das semanas seguintes, ele passou a sentir dificuldade em se locomover e ficava boa parte do dia na cama. Fui visitá-lo nesse período. Estávamos no quarto que ele ocupava na casa dos meus avós; ele deitado, eu sentado em uma cadeira aos pés da cama. Era uma tarde de começo de inverno e o ar recendia a cobertores recém-retirados do armário. Estávamos praticamente em silêncio. Não tínhamos muito assunto, então eu apenas ficava ali, calado ou comentando trivialidades. Sabia que minha companhia bastava. De repente, ele começou a chorar. Um choro desgarrado, daqueles que o sujeito fica um tempo sem respirar e depois puxa o ar com força quase desesperada. Pensei que estivesse sentindo muita dor e ensaiei alguma pergunta. Foi quando ele falou: “Eu fracassei em tudo, meu filho. Em tudo. Sempre tinha alguém mais forte que eu.”

Difícil dizer se doeu mais perceber o quanto meu pai havia sofrido ao longo da vida ou entender que, mesmo com a doença, ele sempre soubera que sua história tinha sido uma sucessão de tentativas malogradas. Tentei consolá-lo. Disse que estava enganado, que ele tinha muitas conquistas de que se orgulhar, seus filhos eram os maiores exemplos disso – adultos independentes, íntegros como ele sempre fora. Ao ouvir isso, se acalmou. Acenou positivamente com a cabeça enquanto limpava as lágrimas nas costas das mãos. Então retomamos o silêncio.

Pouco depois dessa visita, os médicos descobriram que as dores provinham de uma metástase na região lombar da coluna, que esmagava a medula conforme ia crescendo. Os exames apontaram ainda outro tumor semelhante, perto da cervical. Meu pai chegou a se operar para retirar a metástase da lombar, uma cirurgia difícil, de recuperação dolorosa e pouco efeito prático, que apenas nos proporcionou a sensação de que havíamos tentado tudo.

A última vez que o vi vivo foi quando mostrei a ele as fotos da minha formatura. Precisei segurar cada uma das imagens sobre a cama, ele já não podia movimentar os braços. Meu pai, que havia chorado semanas antes ao ver o vídeo da cerimônia, da qual eu tinha sido o orador, dessa vez sorriu orgulhoso.

A morte do meu pai alterou a dinâmica com que eu havia encarado sua doença a vida toda. Não havia mais motivo para fingir normalidade em relação a nada. Meu pai agora estava morto, era uma lembrança, e lembranças podem até mexer em feridas antigas, mas não criam novas. Comecei a encaixar meu pai na minha história de vida, doente como ele de fato sempre havia sido e eu nunca tinha conseguido aceitar. Passei a falar da doença dele com os amigos, a namorada, minha mãe, meu irmão. Aos poucos substituí em meu passado o pai que ficava em casa cuidando dos negócios da família pelo pai medicado com Haldol.

Eu tinha quase 20 anos quando disse pela primeira vez a frase “Meu pai é esquizofrênico”. Até dois anos antes, ao ler a bula de um dos medicamentos dele, não tinha certeza se o diagnóstico era mesmo esse. Estava falando ao telefone com uma amiga, colega de faculdade, sobre o genérico tópico “problemas da vida”, e anunciei que tinha algo para contar. Um segredo que nunca havia revelado a ninguém. Na hora, minha voz travou. Antes de dizer, precisei me livrar dos vinte anos de bloqueio e vomitar tudo que engoli a vida inteira fingindo que a doença não existia. Quando as palavras finalmente saíram, fiquei esperando a reação dela. Espanto, horror ou, pior, pena? Mas ela reagiu com naturalidade. E eu entendi que meu maior drama era apenas um drama, o meu, e não o mais pavoroso de todos.









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