Por mim e pela minha filha
Maria Eduarda Carrilho
Roberta Carrilho
“Quando conhecemos um ser humano,
a primeira distinção que fazemos é:
‘Homem ou mulher?’ ”.
Sigmund Freud
Nossa onipotência infantil – nossa sensação inebriante, deliciosa de prazer – nos garante que podemos fazer, ter e ser qualquer coisa. Irmãos rivais e nossos pais, que jamais podemos possuir, informam que isso não é verdade. O mesmo diz a descoberta, mais ou menos oito meses de idade, de que meninas são diferentes dos meninos. E entre os resultados da descoberta das diferenças anatômicas, certamente está o aprendizado dos limites relativos ao sexo.
Pois, não podemos ser dos dois sexos, embora – como muitos afirmam – o desejo de ser bissexual constitua talvez “uma das tendências mais profundas da natureza humana”. Não podemos, como herói/heroína de Virgínia Woolf, o transmutável Orlando, ser mulher, depois homem e às vezes ambos. Através da nossa bissexualidade inata e nossa capacidade para a empatia, podemos ter algumas experiências do sexo oposto. E, por meio de definições mais amplas do que significa ser mulher ou ser homem, podemos expandir nossas experiências com o sexo também. Mas temos de reconhecer que nenhum dos dois sexos é completo, que existem limitações ao nosso potencial, e que a identidade do gênero a que pertencemos, com todas as suas potencialidades e prazeres, deve se moldar a esses limites – a essa perda.
Estou dizendo que o simples fato de habituarmos um corpo masculino ou um corpo feminino define de modo decisivo – e confina – nossa experiência.
Estou dizendo que – unidos como somos – meu marido e meus filhos são psicologicamente diferentes de mim, de um modo que as mulheres – jamais poderão ser.
Estou dizendo com Freud que ninguém pode nos ver – e não podemos ver ninguém – separados da designação de “homem” ou “mulher”.
Estou dizendo que os limites relativos ao sexo são condicionados culturalmente.
Alguns argumentam que os limites relativos aos gêneros parecem sugerir é que – desde o nascimento – meninos e meninas são tratados como meninos ou meninas, que desde muito cedo as demonstrações de comportamento “masculino” ou “feminino” não podem distinção ser separadas das influências ambientais.
Pois os pais fazem distinção entre filhos e filhas.
Seguram de modo diferentes para os filhos e para as filha.
Suas expectativas são diferentes para os filhos e para as filhas.
E quando os filhos imitam suas atitudes e atividades, identificando-se com elas, são encorajados ou desencorajados, dependendo de serem meninos ou meninas.
Existem na verdade limites reais do sexo? Existe uma psicologia inata masculina ou feminina? E existe algum meio possível de explorar essas questões tão delicadas sem a parcialidade da cultura, da educação ou da política sexual?
Aqui estão algumas respostas que ouvi de três escritoras feministas quando perguntei se achavam que as diferenças entre homens e mulheres são inatas.
A escritora Lois Gould respondeu: “As mulheres menstruam, amamentam e procriam; os homens inseminam. Todas as outras diferenças originam-se da tentativa de construir civilizações em volta desses talentos primitivos – como se fossem os únicos que possuímos”.
A jornalista Gloria Steinem respondeu: “Durante 95% da nossa vida existem mais diferenças entre duas mulheres ou entre dois homens do que entre homens e mulheres, como grupos”.
E a escritora e poetisa Erica Jong respondeu: “A única diferença entre homem e mulher é que as mulheres são capazes de criar pequenos seres humanos no seu corpo, e simultaneamente escrever livros, dirigir tratores, trabalhar em escritórios, plantar a terra – de um modo geral, fazer tudo o que os homens fazem”. Sigmund Freud teria respondido de modo diferente.
Na verdade, existem declarações dele segundo as quais as mulheres são mais masoquistas, mais narcisistas, mais ciumentas e mais invejosas do que os homens, e também têm menos senso moral. Para ele, essas são consequências inevitáveis das diferenças anatômicas entre os sexos – resultantes do fato (fato?) de que a sexualidade original das meninas é masculina em essência, que o clitóris não passa de um pênis pouco desenvolvido, e que ela se considera nada mais do que um menino defeituoso.
Essa imagem que tem de si mesma, de um homem mutilado, prejudica irrevogavelmente sua autoestima, conduzindo-a ressentimentos e tentativas de reparação, que produzem todos os subsequentes defeitos no seu caráter.
Muito bem, como diz seus amigos, quem pode ser brilhante em tudo?
Pois nos anos que seguiram essas afirmações, a ciência chegou à conclusão de que, embora o sexo genético seja determinado no momento da fertilização por nossos cromossomos (XX para meninas; XY para meninos), todos os mamíferos, incluindo os humanos, independentemente do seu sexo genético, começam a vida femininos em estrutura e em natureza. Esse estado feminino persiste até a produção, um pouco mais tarde na vida fetal, dos hormônios masculinos. Só com o aparecimento desses hormônios masculinos. Só com o aparecimento desses hormônios, na hora certa e na quantidade exata, torna-se possível a masculinidade anatômica e pós-natal.
Embora isso não nos diga muita coisa sobre a psicologia feminina ou masculina, prejudica permanentemente a falocentria de Freud. Pois, ao invés de as meninas começarem como meninos defeituosos ou incompletos, no começo todos os seres humanos são femininos.
Entretanto, a despeito dessa falocentria, Freud foi inteligente o bastante para notar, na época, que seus comentários sobre a natureza das mulheres eram “certamente incompletos e fragmentários”.
Disse também: “Se quiserem saber mais sobre a feminilidade, examinem sua própria experiência de vida, ou procurem os poetas, ou esperem até a ciência possa fornecer informações mais profunda e mais coerente”.
Duas psicólogas de Stanford tentaram fazer exatamente isso num livro muito conceituado, ‘A Psicologia das Diferenças entre os Sexos’. Estudando e avaliando uma ampla área de estudos psicológicos, Eleanor Maccoby e Carol Jacklin concluíram que existem várias crenças muito difundidas, mas complemente falsas, sobre as diferenças entre homens e mulheres:
Que as meninas são mais “sociais” e menos “sugestionáveis” do que os meninos.
Que meninas têm um baixo nível de autoestima.
Que as meninas aprendem melhor decorando e executam melhor tarefas repetitivas e simples, ao passo que os meninos são mais “analíticos”.
Que as meninas são mais afetadas pela hereditariedade, e os meninos pelo ambiente.
Que as meninas são mais auditivas, e os meninos, mais visuais. E que as meninas não possuem motivação realizadora.
Na verdade, dizem Maccoby e Jacklin. Tudo isso é mito. Entretanto, alguns mitos – ou serão mitos? - não foram ainda derrubados. Alguns mistérios sexuais continuam insolúveis.
As meninas são mais tímidas? Sentem mais medo? Mais ansiedade? Os meninos são mais ativos, competitivos e dominadores? É uma qualidade feminina – em contraste com uma qualidade masculina – ser protetor, complacente e maternal?
Para as autoras, a evidência é muito ambígua ou muito tênue. Essas questões tantalizantes estão ainda em aberto. Existem entretanto quatro diferenças, segundo elas perfeitamente estabelecidas: as meninas têm mais aptidão verbal. Os meninos têm mais aptidão matemática. Os meninos são melhores em aptidão espaço-visual. E, finalmente, verbal e fisicamente, os meninos são mais agressivos.
Serão essas diferenças inatas ou aprendidas? Maccoby e Jacklin rejeitam esta distinção.
Preferem falar em termos de predisposições biológicas para aprender uma determinada habilidade ou um comportamento. E nesses termos, elas apontam apenas duas diferenças sexuais claramente baseadas em fatores biológicos.
Uma é a maior aptidão espaço-visual dos meninos, comprovadamente originada por um gene recessivo do cromossomo sexual. A outra é o relacionamento que existe entre hormônios masculinos e a agressividade quase instintiva dos homens. Entretanto, até mesmo isso tem sido contestado. A endocrinologista Estelle Ramey, professora de fisiologia e biofísica na Escola de Medicina de Georgetown, diz:
“Acho que os hormônios são coisas pequenas muito importantes, e que não deviam faltar em nenhum lar. Mas acho também que praticamente todas as diferenças entre o comportamento dos homens e das mulheres são culturais, e não determinadas por hormônios. É fora de dúvida que os hormônios sexuais in útero desempenham um papel vital na distinção entre bebês do sexo feminino e do sexo masculino. Mas, logo depois do nascimento, o cérebro humano toma o controle e domina todos os sistemas, inclusive o sistema endócrino. Costuma-se dizer, por exemplo, que os homens são mais agressivos do que as mulheres. Mas o que os fazem assim é o condicionamento, não os hormônios. Quem vê mulheres numa liquidação – onde a agressão é considerada necessária, quase interessante -, vê agressões que fariam empalidecer Átila, o Huno”.
Embora a pesquisa de Maccoby e Jacklin chegue à conclusão de que as meninas não são mais dependentes do que os meninos, o tema de dependência feminina persiste. Há alguns anos, o best seller de Collete Dowling, ‘O Complexo de Cinderela’, provocou reações entre as mulheres, pois afirmava que a mulher teme a independência.
Ali estava o Complexo de Cinderela. Costumava atingir garotas de dezesseis ou dezessete anos, geralmente impedindo-as de ir para a universidade, levando-as a casamentos prematuros e apressados. Agora, atinge as mulheres depois da universidade – depois de terem vivido algum tempo no mundo. Quando diminui o primeiro entusiasmo da liberdade, e a ansiedade cresce para tomar seu lugar, começam a ser atraídas por aquele antigo desejo de segurança: o desejo de ser salva.
Dowling argumenta que as mulheres, ao contrário dos homens, têm um profundo desejo de serem protegidas por alguém, e relutam em aceitar a realidade adulta de que são as únicas responsáveis pelas próprias vidas. Essa tendência para a dependência, afirma Dowling, tem origem na educação da primeira infância, a qual ensina aos meninos que estão sozinhos neste mundo difícil e desafiador, e ensina às meninas que precisam e devem procurar proteção.
As meninas são educadas para a dependência, diz Dowing.
Os meninos são educados para se livrar dela.
Mesmo nos meados dos anos 60, numa escola particular liberal e de elite, no Leste, onde as mães dos alunos são médicas, advogadas e funcionárias do governo, e as próprias alunas são orientadas para a retórica feminista, ouvimos ecos do Complexo de Cinderela. Um dos professores, que leciona comportamento humano para o último ano do ginásio, conta que há alguns anos, costuma perguntar aos alunos onde esperam estar aos trinta anos. As respostas, diz ele, são sistematicamente as mesmas. Tanto meninos quanto meninas esperam que as meninas estejam tendo e criando filhos, e ao mesmo tempo ocupados com algum trabalho do meio período. E, embora os meninos esperem ter conquistado muita liberdade aos trinta anos, as meninas sempre s imaginam bem-sucedido em empregos de tempo integral, sustentando as famílias.
Sem dúvida, muitas mulheres vivem com a fantasia de um-dia-meu-príncipe-vai-chegar.
Sem dúvida, o modo como são educadas pode explicar isso. Mas devemos considerar também que a origem da dependência feminina pode ser mais profunda do que os hábitos de educação da infância. E devemos lembrar que dependência é sempre uma palavra pejorativa.
A dependência feminina parece consistir menos no desejo de ser protegida do que no de ser parte de uma teia de relacionamento humano, o desejo não só de ter – mas de dar – amor e carinho. O desejo de precisar que outras pessoas ajudem e consolem, o desejo de compartilhar os bons e maus momentos, de dizer “eu compreendo”, de estar do nosso lado – e também o inverso, a necessidade de ser necessária, talvez exista no íntimo da própria identidade feminina. A dependência nessas conexões pode ser interpretada como “dependência amadurecida”. Significa também, entretanto, que a identidade – para as mulheres – está muito mais ligada à intimidade do que à separação.
Numa série de elegantes estudos, a psicóloga Carol Gilligan concluiu que, ao passo que a autodefinição masculina enfatiza a realização individual sobre a união afetiva, as mulheres quase sempre se definem dentro de um contexto de relacionamentos afetivos responsáveis. Na verdade, ela faz notar que “as vozes masculinas e as femininas falam da importância de verdades diferentes, as primeiras, sobre o papel da separação que define e reforça o eu, as segundas, sobre o processo contínuo de união que cria e sustenta a comunidade humana”. Só porque vivemos num mundo onde a maturidade é identificada à autonomia, argumenta Gilligan, a preocupação das mulheres com relacionamentos é vista como uma fraqueza, e não como uma força.
Talvez sejam as duas coisas.
Claire, uma futura médica, vê um significado especial na união. “Quando se vive sozinha, as coisas têm pouco significado”, diz ela. “É como o som de uma só mão batendo palmas... Precisamos amar alguém, embora não gostemos deles, não podemos nos separar deles. De certo modo, é como amar nossa mão direita. Eles são parte de nós; aquela outra pessoa é parte da gigantesca coleção de pessoas às quais somos ligadas”.
Mas Helen, falando sobre o fim um relacionamento, revela o risco inerente na intimidade. “O que eu tive de aprender”, diz ela, “não era só o fato de possuir um eu capaz de sobreviver, quando Tony terminou o relacionamento, mas também o fato de que eu tinha um eu! Francamente, não tinha certeza de que, quando nos separamos, havia sobrado alguma coisa desse eu!”.
Freud certa vez observou que “nunca estamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o objeto do nosso amor ou seu amor por nós”. Palavras especialmente verdadeiras para as mulheres. Pois as mulheres, muito mais que os homens, são dominadas pelo sofrimento chamado depressão, quando tem fim um relacionamento importante. A lógica aqui parece indicar que a dependência da mulher da intimidade faz delas, senão o sexo mais fraco, pelo menos o mais vulnerável.
É importante lembrar que estamos falando de homens e mulheres em geral. Pois existem mulheres que não conseguem permitir nenhuma intimidade, e homens que se entregam com prazer e facilidade. Mas, argumenta-se, e eu concordo que a maioria das mulheres comparada à maioria dos homens, tem mais capacidade para relacionamentos íntimos. E argumenta-se, e eu concordo que essa capacidade é um fator importante nas diferenças entre homens e mulheres.
Se a natureza feminina é de fato mais gregária, mais interdependente, mais dada a relacionamentos pessoais, qual a razão disso? Voltemos um pouco atrás, e consideremos a questão sob a luz de como meninos e meninas estabelecem sua identidade sexual.
Pois, quase todos concordam isso os dois sexos – nós todos – fossem originalmente incorporados com a mãe, que a primeira identificação – a primeira de todos nós – fosse com ela. É certo que tanto os meninos quanto as meninas podem escapara da simbiose e erguer as fronteiras entre mãe e filho. É certo que meninos e meninas têm de se libertar. Mas uma simbiose intensa e prolongada ameaçará muito mais a masculinidade do menino do que a feminilidade das meninas, porque a intimidade ou a identificação com a primeira figura que cuidou de nós significa a intimidade ou a identificação (na maioria dos casos) com uma mulher.
Assim, as meninas, para serem meninas, continuam a identificação inicial com a mãe.
Meninos, para serem meninos, enfaticamente devem repudiá-la. Na verdade, precisam desenvolver o que o psicanalista Stoller chama: “a ansiedade da simbiose”, um escudo protetor contra os próprios fortes desejos de ser o mesmo que a mãe, um escudo que preserva e amplia o senso de masculinidade.
No segundo e terceiro anos de vida, então, os meninos decididamente afastam-se da mãe. Eles se desidentificam com o que ela é. Mas esse afastamento, esse escudo protetor, pode implicar grande número de defesas antifemininas. Assim, pode acontecer que o preço da desidentificação seja o desdém, o desprezo, às vezes até o ódio pelas mulheres, um repúdio das partes femininas que existem neles, e um medo permanente da intimidade, porque ela solapa a separação sobre a qual foi construída sua identidade masculina.
Esse medo da intimidade, a propósito, estende-se aos relacionamentos homem com homem também. Em um pequeno e impressionante livro intitulado “O Clube do Homens”, alguns homens da classe média reúnem-se para contar as histórias das suas vidas. Essa abertura das barreiras convencionais, esse passo “feminino” na direção da intimidade os perturba de tal modo, que acabam destruindo a casa e uivando – uuuuu – como animais selvagens, “até parecer que éramos uma só pessoa uivando cada vez mais alto, ascendendo para o alto, enquanto mergulhávamos na dissolução primitiva...”.
Enquanto que a intimidade é uma ameaça para os meninos, as meninas temem mais a separação, pois uma identidade feminina se baseia no relacionamento com outra pessoa. Acredito que as mulheres são literalmente feitas para relações mais íntimas, pois o corpo feminino, afinal, se destina a acomodar outros seres humanos.
Anatomicamente, a mulher pode acomodar outros seres humanos. Anatomicamente, a mulher pode acomodar o pênis na vagina. Pode abrigar e alimentar o feto no útero. A psicologicamente parece mais apta do que os homens para se identificar com as necessidades do companheiro e se adaptar a elas.
Já foi dito que as mulheres sofrem uma lavagem cerebral, que são criadas para depender de relacionamentos, e que dariam a alma, todo o seu ser, para mantê-los inatos. Já argumentaram que as adaptações das mulheres são adaptações de escravas.
Porém, é possível que o fato amplamente conhecido, de que as mulheres se adaptam melhor que os homens nos relacionamentos privados, seja devido a uma capacidade inata, uma capacidade especificamente feminina para acomodar, a capacidade que reflete a história do desenvolvimento da mulher, e talvez até mesmo a sua... anatomia?
(E essa acomodação, que na melhor das hipóteses simboliza a concepção de que uniões imperfeitas são melhores do que uma autonomia perfeita, na verdade será menos “evoluída” ou menos madura?).
Vejamos o que diz Ella:
“Somei os prós e os contras, e os prós ganharam. Quero o relacionamento. Isso significa que devo renunciar à expectativa de algum dia deixar o emprego, porque ele jamais vai ganhar muito dinheiro. Significa não dizer a ele que está bebendo demais nas festas, porque ele sempre bebe demais nas festas. Significa também que não devo cometer a indiscrição de perguntar com quem ele dorme quando está fora da cidade”.
Por que Ella se dá a esse trabalho? Aqui está sua resposta:
“Estamos, casados há trinta anos. Temos uma história. Temos bom sexo, bons momentos e netos. Sei que poderia viver sozinha, mas temos algo valioso juntos que vale a pena ser preservado. Assim – eu me adapto”.
Um dos argumentos a favor da maior adaptabilidade das mulheres nos relacionamentos baseia-se no que acontece durante a fase edipiana. Pois, embora os meninos tenham de renunciar à forte identificação com a mãe, ela foi e pode continuar heterossexuais, podem continuar a desejar uma mulher, como a mãe. As meninas, para conseguir sua heterossexualidade, não podem. Devem renunciar ao original e querido objeto de suas afeições e mudar a escolha de uma mulher para a de um homem.
O analista Leon Altam sugere que a flexibilidade feminina deriva desse afastamento sexual da mãe. “Essa renúncia”, escreve ele, “a prepara para as demais renúncias, no futuro, de um modo que o menino pode imitar”.
Para a menina, renunciar à mãe como objeto de seus desejos sensuais é algo muito difícil, uma perda radical. Na verdade, alguns analistas dizem que a tão falada inveja do pênis – da qual, insiste Freud, todas as mulheres sofrem – pode ser interpretada como o objeto de evitar essa perda.
Se ao menos eu tivesse o que os meninos têm – poderia fantasiar uma menina -, não precisaria renunciar ao primeiro amor da minha vida.
Se eu ao menos tivesse um pênis – poderia raciocinar a lógica inconsciente da infância -, não precisaria desistir da minha mãe.
Mas a inveja da primeira infância não se limita à inveja do pênis; nem essa ou outra inveja pertence só às meninas. Pois, quando a criança começa a aprender o que é um corpo e de certas capacidades pode ser mútua. Queremos – é claro que queremos! – aquele seio que alimenta, aquele pênis versátil, aquela habilidade mágica e maravilhosa de fazer bebês. Ao contrário do triângulo ciumento, a inveja começa como uma peça de dois personagens: “Você tem; eu também quero ter”.
Invejar, diz o dicionário, é “sentir-se descontente pelo fato de outra pessoa possuir p que desejamos para nós”. Na verdade, dizem alguns psicanalista, as origens da inveja podem remontar à inveja do seio da mãe, uma inveja daquela “fonte de todos os confortos, tanto físicos quanto mentais”, aquele reservatório de plenitude e força.
Mais tarde, quando a criança aprende as diferenças anatômicas, o menino pode dizer que gostaria de ter bebês também. Ou pode negar que não pode ter bebês meninos. As defesas que os meninos estabelecem contra sua inveja da gravidez, ou do útero, podem levar a um desinteresse permanente por bebês. Porém, foi muitas vezes afirmado que as atividades criativas dos homens no mundo são pálidos substitutos – sua versão externalizada – do poder de criar uma nova vida.
Algumas tribos primitivas permitem que os homens expressem sua inveja do útero por meio do Couvade – o costume de o marido ficar na cama, como se fosse ter um filho, por ocasião do trabalho de parto da mulher. E alguns rituais da puberdade, segundo a hipótese do analista Bruno Bettelheim, podem ter como objeto ajudar meninos e meninas a enfrentar a inveja pelas potencialidades muito mais focalizada. Sendo assim, ele procura enfatizar a inveja comum dos homens da vagina produtiva das mulheres, e dos seios que fabricam leite.
“Acredito, escreve Bettelheim, “que o desejo de possuir... as características do outro sexo é uma consequência necessária das diferenças entre os sexos”. Mas possuir as características do outro sexo pode significar perder as características do nosso. Por meio dos rituais da iniciação o homem procura, diz ele, “expressar suas ansiedades sobre o próprio sexo, cobiçando experiências, órgãos e funções só acessíveis às pessoas do outro sexo, e assim libertando-se deles”.
Tem sido observado que, com a mudança das atitudes sociais, o desejo secreto do homem de ter filhos não precisa ser tão escondido. Assim, ele acompanha a mulher às aulas de parto natural e respira com ela na sala de parto. Muitos homens (não falo agora de sociedade primitiva, mas do homem americano moderno de classe média) podem de tal modo se identificar (embora inconscientemente) com a capacidade da mulher para ter filhos que, durante a gravidez, eles – os homens! – têm crise de enjoo, sentem-se cansados e chegam a ganhar, às vezes, quinze quilos e uma barriga.
Há mais de cinquenta anos, Felix Boehn escreveu sobre a intensa inveja masculina de capacidade de ter filhos – a “inveja do parto” – e a inveja dos seios femininos. Boehm observa “que quando vemos alguém com algo mais do que possuímos, nossa inveja se acende... A qualidade de coisa ‘diferente’ não é muito importante”.
O que importa é que as diferenças físicas – tanto para homens quanto para mulheres – são vistas como uma diminuição, uma perda.
A inveja dos órgãos sexuais pode começar como um desejo real, mas é acrescida de significados metafóricos. Assim, a inveja do pênis, por exemplo – que nos parece uma ideia tão estranha, encarada por muitos como sexista ou tola – pode ter mais sentido quando passamos do fato de invejar um instrumento versátil e elegante ao sentido dessa possessão.
A falta do pênis pode ser, por exemplo, um símbolo em volta do qual se acumulam sentimentos antigos de privação ou de logro.
Pode também ser um símbolo do temor de não sermos exatamente o que o médico, ou nossa mãe, ordenou: Lembrem-se de cada filho teve a mãe de quem foi filho adorado,e cada mulher teve a mãe de quem não foi a filha adorável.
Pode ser ainda símbolo de um equipamento defeituoso para fazer seja o que for na vida, porque – como disse uma mulher tentando descrever seus sentimentos de inferioridade – “não há nada lá”.
As mulheres que exercem uma profissão muitas vezes falam das dúvidas sobre sua capacidade, da impressão de que não têm o que é necessário, da certeza de que falta a elas alguma coisa essencial para o sucesso, da crença – quando alcançam o sucesso – de que seu triunfo foi obtido fraudulentamente. A certeza de que os homens são “equipados para o sucesso”, e elas não, é a versão da inveja do pênis entre as mulheres que trabalham.
A inveja do pênis pode ser também o símbolo do que é necessário para adquirir os poderes e as prerrogativas dos homens. Pois se o pênis significa homem, e homem significa ter todo o tipo de vantagens especiais, então a inveja pode formar um elo inconsciente entre a vantagem masculina e a anatomia do homem.
Em estudo recente, foi feita uma pergunta simples acerca de duas mil crianças da terceira à décima segunda série: se você acordasse amanhã e descobrisse que tinha se tornado um (menino) (menina), o que se modificaria em sua vida? E a despeito de mais de uma década de conscientização do problema do preconceito sobre os sexos, as respostas, tanto dos meninos quanto da meninas, revelam um lamentável desprezo pelo sexo feminino.
Os meninos das escolas elementares, completamente horrorizados, geralmente deram títulos às suas respostas, como “O Desastre” ou “O Sonho Fatal”. A seguir, respondiam:
“Se eu fosse menina, seria burra e fraca como um fio de linha”. Ou: “Se eu acordasse transformado em menina, ia desejar que fosse um pesadelo e voltaria a dormir”. Ou ainda: “Se eu fosse menina, todos seriam melhores do que eu, porque meninos são melhores do que meninas”. Ou também: “Se eu fosse menina eu me matava”.
Os meninos acharam que, como meninas, teriam de se preocupar mais com a aparência física (“Não podia mais andar malvestido – tinha de cheirar bem”); acharam que seu trabalho seria trivial (“teria de cozinhar, ser mãe e coisas nojentas desse tipo”); que suas atividades seriam restritas (“teria de odiar cobras”); e que não seriam tão bem tratados. As meninas concordaram com esses julgamentos.
“Se eu fosse menino”, escreveu uma garota da terceira série, “faria as coisas de modo melhor do que faço agora”. E mais: “Se eu fosse menino, toda a minha vida seria mais fácil”. Ou ainda: “Se eu fosse menino podia me candidatar à presidência”. E esta – comovente: “Se eu fosse menino talvez meu pai me amasse”.
Um ou outro garoto respondeu que via certas, vantagens em ser mulher: “Ninguém ao caçoar de mim por ter medo de sapos”. Entretanto, nas séries mais adiantadas, nenhum menino invejava as meninas, mas as meninas continuavam a achar a vida do homem muito melhor.
Chega um tempo em que as meninas descobrem que lhes falta uma parte do corpo. Então, elas começam a desejar essa parte. Algumas finalmente abandonam esse desejo; outras, não. Estas últimas aparentemente sentem que lhes falta algo que as faria suficientemente boas, melhores, ou completas. O que desejam então é um pênis, mas aquele “algo” que o pênis passa a representar.
A inveja do pênis pode fazer com que as mulheres desprezem a si mesmas ou às outras mulheres – defeituosas. Pode fazer com que odeiem ou supervalorizem os homens.
Pode levá-las à procura de um marido que, como disse Evelyn quando se casou, “seja exatamente o que eu seria se fosse homem”. Ou pode se expressar como a exigência de um tratamento especial, como compensação por ter sido maltratada e lograda pelo destino.
Embora as meninas possam se considerar “privadas de alguma coisa”, não constituem o único sexo a ter inveja do pênis. No estágio de Édipo, os meninos – na competição com o pai pela conquista da mãe – querem o que o pai tem, e isso significa também o pênis. Isso não significa que os meninos muito novos compreendam o papel do pênis no ato sexual; suas ideias sobre esse ato são vagas e estranhas. Mas, como tudo o mais que o papai tem, seu pênis é extremamente maior do que o dele. E, dentro da teoria dos garotinhos (muitas vezes a teoria dos homens adultos) de que o maior é o melhor, eles o invejam.
Assim, a descoberta das diferenças anatômicas pode criar, tanto nos meninos quanto nas meninas, sentimentos de inveja. Mas a intensidade dessa inveja, sua importância, varia de acordo com cada vida individual e única. Outro resultado desse curso pré-escolar de anatomia comparada pode ser uma dramática elevação de ansiedade, com a preocupação pelas partes do corpo que podem se perdidas ou que já perderam.
Para os meninos, esses temores estão intimamente ligados ao fato de existir um enorme grupo de pessoas aparentemente sem pênis. As meninas certamente têm um! Não têm?
Então, por que o perderam? O valor que dão a esse órgão – é gostoso, é bonito – e a descoberta de que pode desaparecer, dá origem ao temor masculino (pensando bem, bastante razoável) chamado “ansiedade de castração”.
Essa ansiedade é acentuada pela ambições edipianas: o desejo presunçoso de tomar o lugar do pai. E o medo de pagar um alto preço por essa competição – como se atreve?
– pode às vezes acompanhar o homem até a idade adulta. Quando um homem competente faz o possível para fracassar, ou se diminui constantemente, ou tem dificuldade de levar para a cama a mulher que ama, pode estar ainda dizendo mentalmente ao pai assustador: “Não precisa me machucar – como vê, não sou uma ameaça para você”.
No fim da fase de Édipo, o indivíduo adquiriu uma ideia mais rica, mais complicada sobre o que significa masculino e feminino. A solução dos conflitos triangulares ajuda a determinar que tipo de homem ou mulher ele virá a ser. As meninas reforçam a identificação feminina, esperando algum dia casar-se com um homem igual ao pai. Os meninos reforçam a identificação masculina, esperando algum dia casar-se com uma mulher igual à mãe. Nesse processo aprendem com maior ou menor clareza o que não podem ter ou ser. “Papai, eu amo você!”, diz a criança de quatro anos com um olhar erótico. “Acho que quando crescer vou me casar com um homem!”. Mas, acontece que essa criança é um menino, e vai aprender que a mamãe que ele também ama ternamente é o modelo mais conveniente para o objeto dos seus desejos sexuais.
A identidade sexual molda-se de acordo com a figura do progenitor do mesmo sexo, mas também com a do outro sexo. Na classe média americana, neste fim de século XX, os meios pelos quais se pode ser homem ou mulher estão amplamente abertos. Mesmo assim, temos corpos que serão para sempre diferentes. E caminhando na estrada do desenvolvimento psicossexual, tomamos atalhos diferentes – um para os meninos, outro para as meninas. Como seres humanos heterossexuais, nos identificamos e amamos de acordo com os padrões e possibilidades de cada sexo. Mas o que determina o fato de nossa anatomia moldar ou não nosso destino é o modo como vemos nossos limites.
Pois, certamente, existem limites ligados ao sexo. E certamente podemos vê-los como perdas. Mas o reconhecimento dos limites não se opõe – na verdade, pode ser um requisito necessário – ao desenvolvimento criativo da potencialidade.
“O ceramista que trabalha com argila reconhece as limitações do material”, escreve Margaret Mead. “Precisa temperá-lo com uma certa quantidade de areia, vitrifica-lo até certo ponto, mantê-lo a uma determinada temperatura, queimá-lo com certo grau de calor. Mas, reconhecer as limitações do material não significa limitar a beleza da forma, que suas mãos de artista, com a experiência da tradição, informadas por sua própria visão do mundo, impõem à argila”.
O que ela está dizendo é que a liberdade começa quando reconhecemos o que é possível – e o que não é.
Está dizendo que, se chegarmos a conhecer a natureza da nossa argila, podemos impor nosso destino sobre a anatomia.
Judhit Viorst
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