Por mim e pela minha filha, Maria Eduarda Carrilho ...
Roberta Carrilho
“Quando digo:
“eu”, quero dizer uma coisa absolutamente única,
que não deve ser confundida com nenhuma outra”.
Ugo Betti
“eu”, quero dizer uma coisa absolutamente única,
que não deve ser confundida com nenhuma outra”.
Ugo Betti
O “EU’ PARTICULAR
Quem é aquela criança presunçosa que ousa manter-se de pé sozinha? Respondemos – com orgulho, com embaraço: “Sou eu”. Esse “eu” é uma declaração da consciência do próprio ser – de alguns dos seres que somos ou que fomos, ou que poderemos ser. Nosso corpo e nossa mente, nossos objetivos e funções, nossos desejos e limites, nossos sentimentos e capacidades, todos, e mais ainda, estão contidos dentro daquelas duas letras.
Nosso “eu” – o “eu” que somos agora – pode estar fazendo um cozido de carne, fazendo amor, candidatando-se a um cargo político, disputando uma maratona, sendo sábio no tribunal e grosseiro no tintureiro, e morrendo de medo na cadeira de periodontista; e sabendo que todos esses eus, e aquele rosto de sessenta e seis anos no álbum de fotografias que, mais cedo ou mais tarde, seremos, são uma entidade coerente, parte de uma única identidade, são o “eu”.
Tornando-nos esse “eu”, temos de renunciar ao paraíso inigualável da união total, da feliz ilusão de estar intocavelmente seguros e das simplicidades reconfortantes de um universo ordenadamente dividido em duas partes, onde o bem é só bem e o mal é só mal. Transformando-nos nesse “eu” entramos num mundo de solidão, impotência e ambivalência. Conscientes do nosso terror e da nossa glória, dizemos: “Este sou eu”.
Como vocês sem dúvida, já devem saber, existe um modelo que divide a mente em três estruturas hipotéticas: o id, a província dos desejos infantis. O superego, nossa consciência, nosso juiz interior.
E o ego, a sede da percepção, da memória, da ação, do pensamento, da emoção, da defesa e do autoconhecimento – o lugar onde vive o “eu” como imagem de nós mesmos.
Este “eu” – esta auto-representação – é feito de fragmentos da experiência que nosso ego integra como um todo: experiências de harmonia e alegre confirmação. Experiências dos nossos relacionamentos humanos iniciais. A teoria, neste caso, é de gradualmente uma imagem do “eu psíquico” se constitui em redor de uma primeira imagem do “eu físico”, de modo que, mais ou menos aos dezoito meses de idade, a criança começa a se referir a nós usando nosso nome, bem como a usar aquela inconfundível primeira pessoa do singular.
O “eu” a que nos referimos tomou para si – internalizou – uma imagem do eu, a criança sob os cuidados amorosos da mãe. Mas internalizou também – tornando-se igual, identificando-se vários aspectos dessa mãe amorosa.
A identificação é ser autoritário, cauteloso, amante dos livros – como minha mãe.
Identificação é ser superorganizado e teimoso – como meu pai.
Identificação é o fato de nossos filhos – uma vez que meu marido e eu estamos acostumados a tomar de chuveiro todos os dias - , antes mal lavados, transformarem-se em usuários do chuveiro diariamente.
Identificação é talvez o fato de a maça não cair muito longe da árvore.
Nossas primeiras identificações tendem a ser globais, de abrangência total. Mas com o tempo identificamos parcial e seletivamente. E quando dizemos: “Serei como esta parte de você, mas não como aquela”, a identificação fica cada vez mais despersonalizada. Assim, nos tornamos – não clones de nossa mãe ou nosso pai, ou de outros – mas uma pessoa de fala mansa, trabalhadora, humorista, dançarina ou muito rápida. Como o Ulisses de Tennynson, podemos afirmar: “Sou parte de tudo o que conheci”.
Mas essas partes foram transformadas. Cada um de nós é o artista do próprio eu, criando uma colagem – uma obra de arte nova e original – com fragmentos e recortes de identificações.
As pessoas com quem nos identificamos são sempre, negativa ou positivamente, importantes para nós. Nossos sentimentos para com elas são de certo modo sempre intensos. E, embora possamos nos lembrar claramente de uma decisão consciente de emular um professor ou uma estrela do cinema, a maior parte das identificações ocorrem fora do nosso consciente. (Enquanto escrevo isto, lembro-me que uso franja até hoje porque era usada por meu ídolo absoluto – Pat Norton).
Fazemos a identificação por motivos diferentes e variados, e geralmente por minutos de uma só vez. E geralmente nos identificamos para enfrentar a perda, preservando dentro de nós – digamos, adotando um estilo de roupas, um sotaque, maneirismos-alguém que precisamos abandonar ou que morreu.
Assim, um homem de meia-idade deixa crescer o bigode logo depois da morte do pai que usava bigode.
E um universitário do segundo ano passa do curso de administração para o de psicologia, logo depois da morte da mãe que era psicóloga.
E a mulher que sempre se sentia perturbada pelos modos terríveis do marido à mesa, adquire essas péssimas maneiras logo depois da morte dele.
E o marido que nunca fora à igreja começa a ir regularmente, logo depois da morte da piedosa e praticante esposa.
Mas nossas perdas não precisam se mortais; as perdas diárias do crescimento geralmente promovem importantes identificações. Pois a identificação pode servir simultaneamente como um meio de se prender e se liberar. Na verdade, o ato de identificação geralmente parece significar: “Não preciso de você para fazer isso, posso fazer sozinho”. Permite a renúncia de importantes aspectos do relacionamento, adotando-os como nossos.
Nossas primeiras identificações são, na maior parte, as de maior influência, limitando e modelando tudo o que virá depois. E embora nos identifiquemos, permanente ou provisoriamente, com aqueles que amamos, invejamos ou admirados, podendo também nos identificar com aqueles que provocam nossa zanga ou dos quais temos medo.
Esta “identificação com o agressor” pode ocorrer em situações de impotência e frustração, quando alguém maior, mais forte ou mais poderoso nos tem sob seu controle. Numa atitude que lembra o “se não pode derrota-los, junte-se a eles”, tentamos nos parecer com as pessoas que tememos e odiamos, na esperança de assim ganhar o mesmo poder e nos defender contra o perigo que representam.
Assim, a herdeira sequestrada Patty Hearst transformou-se na terrorista Tânia.
Assim, por meio da “identificação com o agressor”, a criança maltratada pode vir a ser um molestador de crianças.
A identificação pode ser ativa e passiva, de amor e ódio, para o melhor e para o pior. Pode ser identificação com o impulso de alguém, suas emoções, consciência, realizações, habilidade, estilo, objetivo, penteado, sofrimento. E através dos anos, enquanto modificamos e harmonizamos essas diferentes identificações incluindo, é claro, as identificações de acordo com o gênero; e incluindo talvez, a importante identificação com uma religião, profissão ou classe; incluindo ainda, infelizmente, a identificação com qualidades terríveis, bem como com excelentes qualidades -, possivelmente teremos de nos descartar de outros eus.
A renúncia a esses outros possíveis eus é mais uma das nossas perdas necessárias.
“Bem que eu gostaria de ser, se pudesse”, escreve William James, ao mesmo tempo belo e gordo e bem-vestido, um grande atleta ganhar um milhão por ano, ter humor, ser um bom vivant e um grande conquistador, bem como filósofo, filantropo, político, guerreiro e explorador da África, ou ainda um poeta lírico e um santo. Mas a coisa é simplesmente impossível... Personagens tão diferentes talvez possam parecer possíveis para um homem no começo da sua vida. Mas, para torna-las reais, o resto, mais ou menos, deverá ser suprimido. Assim, aquele que procura o eu mais verdadeiro, mais forte, mais profundo deve examinar cuidadosamente a lista, e apanhar aquele no qual possa arriscar sua salvação. Todos os outros eus tornam-se então irreais...
Nosso fracasso na tarefa de harmonizar mais ou menos as diferentes identificações – a incapacidade de integrar nossos eus separados – pode levar ao extremo daquela estranha desordem mental chamada dupla personalidade, onde (lembram-se do filme ‘As três faces de Eva?’ um certo número de personalidades contraditórias habitam uma única pessoa. Porém, por toda parte existem pessoas com desordens menos graves da personalidade – donas-de-casa, advogados, governantes. Por toda parte, mulheres e homens com perturbações do senso de integridade mental representam baixas emocionais no nosso mundo.
E, sem dúvida, todos nós já encontramos o tipo que Winnicott chama de personalidade com falso eu.
Ou pessoas que psicanalista Helene Deutsh chama de personalidades “como se fossem”.
Ou aqueles que residem na borda extrema da fronteira da neurose psíquica, literalmente chamadas de personalidades limítrofes.
Um tipo que é atualmente muito estudado por especialistas em experiências psíquicas e sociológicas, é a personalidade narcisista faminta por um eu.
Cada um desses tipos pode ser citado quando se fala sobre distorções do eu e da auto-imagem. Cada um está ligado a descrições pouco diferentes, mas sempre sobrepostas a um dano causado ao “eu” particular.
A psicanalista Leslie Farber descreve o que acontece à pessoa que edifica toda a sua existência em volta de um falso eu, acreditando que precisa “brincar com a própria imagem... para merecer a atenção e a aprovação que deseja...”. Essa pessoa, além de sofrer a dor e a vergonha de “um eu secreto, desagradável e ilegítimo”, sofre também o “ônus espiritual de não aparecer como a pessoa que ‘é’, ou de não ‘ser’ a pessoa que aparenta...”.
Na verdade, todos nós, uma vez ou outra, brincamos com nossa imagem pública. Queremos impressionar, agradar, apaziguar, conquistar. E certamente nós todos, às vezes, usamos uma certa dose de engano, dando a nós mesmos um B+ para aquilo que um observador justo e imparcial daria apenas a nota C. Mas sem dúvida, a maioria de nós, quase sempre, tenta manter uma conexão razoável entre o eu que somos e o eu que mostramos. Pois quando essa conexão se desfaz, o eu que apresentamos ao mundo pode ser um falso eu.
Como o caso da mulher que, tendo alcançado sucesso num campo de atividade altamente competitivo, insiste em afirmar: “Na verdade, sou apenas uma moça pobre do Brooklyn”.
Como o homem que se refere aos “meus dois ‘eus’, o verdadeiro... que morre de medo de ser revelar”, e “o outro ‘eu’... que cumpre as exigências sociais”.
E talvez como Richard Cory, um homem “que cintilava quando andava”, que era invejado pela vida que levava, que era belo, rico, um cavalheiro, e que, numa noite de verão, “foi para casa e deu um tiro na cabeça”.
Pessoas que levam a vida com um falso eu.
O verdadeiro eu, segundo Winnicott, tem origem no nosso mais antigo relacionamento, na sensível afinidade entre mãe e filho. Começa com respostas que, na verdade, significam: “Você é o que é. Está sentindo o que sente”. Permitindo que acreditemos na nossa própria realidade. Convencendo-nos de que é seguro expor o nosso primeiro, frágil e verdadeiro eu, em processo de crescimento.
Imaginemos o seguinte: estendemos a mão para um brinquedo, mas, no processo de alcança-lo, olhamos para nossa mãe por uma fração de segundo. Estamos procurando, não uma permissão, mas algo mais. Procuramos uma confirmação de que esse desejo, esse gesto espontâneo realmente nos pertence. De que sentimos o que sentimos.
Nesse momento delicado e sutil, a presença receptiva – e também não intrusora – de nossa mãe, permite que tenhamos confiança no nosso desejo: “Sim, eu quero isto. Quero-o realmente”. Tendo confirmado nosso nascente senso do eu, confirmada nossa “conscientização do eu”, continuamos o movimento para apanhar o brinquedo.
Mas se a mãe responde à pergunta dos olhos da criança sem entender sua necessidade, ou confundindo-a com as dela, a criança não pode confiar na verdade do que sente ou do que faz. A falta de harmonia pode fazer com que a criança se sinta repudiada, maltratada. E então, defende seu verdadeiro eu, formando um falso eu.
Este falso eu é complacente. Não tem agenda. É como se dissesse: “Serei o que você quiser que eu seja”. Como a árvore esparramada que tem seu crescimento impedido, adapta-se à forma imposta por elementos externos. Essa forma pode ser atraente, às vezes maravilhosamente atraente, mas não é real.
A personalidade “como se fosse”, descrita por Helene Deutsch, é mais camaleônica do que o falso eu, pois a “facilidade para detectar sinais do mundo exterior e para moldar o comportamento de acordo com esses sinais” tem como resultado a mudança frequente – mas extremamente convincente – das imitações, primeiro de um tipo de pessoa, depois de outro. A personalidade “como se fosse” não se apercebe do vazio no seu íntimo. Vive sua vida “como se” não se apercebe do vazio no seu íntimo. Vive sua vida “como se” fosse um todo. As expressões que usa, as ligações que escolhe, seus valores, suas paixões, seus prazeres, apenas imitam realidades de outras pessoas. E finalmente provoca constrangimento nas pessoas que olham e pensam: “Espere, alguma coisa está errada” – apesar do brilhante desempenho. Pois, sem que saiba, como um humanoide de filmes de ficção científica, duplica apenas as formas do ser humano. Age como se estivesse sentindo, mas não possui experiência interior correspondente.
Uma caricatura engraçada e brilhante da personalidade “como se fosse” é apresentada por Woody Allen no filme ‘Zelig’, onde o herói tem tão pouca ideia de si mesmo que se transforma na pessoa com quem está no momento. Leonard Zelig – ansioso para ser aceito, apreciado, para se encaixar – transforma-se em negro, chinês, em obeso e em chefe índio, parece uma cópia dos camisas-pardas de Hitler, da comitiva do papa e do time de Babe Ruth. Adotando não só suas características físicas como também mentais, Zelig transforma-se nas pessoas com quem convive. “Não sou ninguém, não sou nada”, diz ele ao psiquiatra. O que ele é na verdade é Leonard Zelig – camaleão humano.
A personalidade limítrofe divide o bem e o mal em si mesma e nos outros, usando o processo de divisão em duas partes. Muito cedo na vida, começa a temer que a raiva que às vezes sente da mãe (que todos nós sentimos) possa destruí-la – e então, o que será dela? Porém, se a mulher que ama e que odeia poder ser vista como duas pessoas distintas, poderá odiar impunemente. Então, ela a transformará em duas.
O ser limítrofe, segundo o psicanalista Otto Kemberg, tem vida fragmentada, de momento em momento, “cortando ativamente os elos emocionais com tudo o que poderia vir a ser uma experiência caótica, contraditória, extremamente frustrante e assustadora... Embora sinta amor e ódio, não consegue jamais juntar esses dois sentimentos, temendo que o mal envenene o bem. Ameaçado pelo sentimento insuportável de culpa resultante desse temor de destruição, o ser limítrofe pode nos amar às segundas e quartas-feiras, e nos odiar às terças e quintas e nos sábados alternados, mas jamais amará e odiará simultaneamente. Ele separa”.
Como é de esperar, o ser limítrofe é instável nos seus estados de espírito e nos seus relacionamentos. Geralmente é impulsivo e fisicamente autodestruidor. Pode achar difícil ficar sozinho. Mas o traço mais acentuado do ser limítrofe é a separação em duas partes distintas, que lhe permite tolerar profundas contradições nos próprios pensamentos e ações, com diferentes partes do seu eu desligadas – como ilhas separadas – uma da outra.
O narcisista é geralmente visto como um adorador de si mesmo (De que ponto de vista eu me amo? Deixem-me conta-los.). Mas, na verdade, é a ausência de um instável amor interior por si mesmo – o narcisista saudável – o que inspira essa devoradora preocupação com a própria pessoa. Que o obriga a suar os outros apenas para se sobressair. Que o obriga a usá-los como reflexos e extensões de si mesmo.
Devo ser atraente – vejam a bela mulher ao meu lado.
Devo ser importante – convivo com celebridades.
Devo ser interessante – sou sempre a estrela, o centro das atenções.
Devo ser – não devo?
Alguma coisa está errada com seu confiante amor interior por si mesmo.
Freud diz que o amor que sentimos por nós mesmos, antes de termos consciência de que outras pessoas existem, é um narcisismo original – um narcisismo primário. Diz também que mais tarde, mesmos, estamos demonstrando um narcisismo secundário. Segundo ele, o amor por si mesmo e o amor pelos outros são opostos. E isso nos deixa com a impressão de que o narcisismo certamente nunca foi uma boa coisa.
Recentemente, entretanto, alguns psicanalistas – especialmente Heinz Kohut – questionaram essa visão negativa e polarizada do narcisismo. O narcisismo, diz Kohut, é normal, é saudável, é importante, é uma boa coisa. E o amor intenso por si mesmo enriquece e complementa – não esvazia – o nosso amor pelos outros.
Como adquirir um narcisismo desejável – mas não super-reverente?
Aparentemente, Kohut nos diz que começamos com um senso de ser e de possuir tudo o que é perfeito, poderoso e bom. E, para chegar a um acordo com os limites da grandeza humana, precisamos primeiro um injeção de narcisismo.
Pois há uma época de nossa vida em que precisamos nos pavonear do que somos e caminhar com grandeza, quando precisamos ser vistos como notáveis e raros, quando precisamos nos exibir na frente de um espelho que reflete nossa autoadmiração, quando precisamos de um pai ou uma mãe para ser esse espelho. (Isso significa o prazer simples que os pais podem sentir com um filho, o prazer que sentem, o elogio que oferecem, a habilidade de corresponder ao exibicionismo da criança quando diz: “Mamãe, veja só!”, com orgulho e encorajamento. Não significa de modo algum a indulgência total nem a ausência da frustação. Todos precisam de um pouco de frustação para crescer).
Há também uma época da nossa vida em que precisamos participar da perfeição de outra pessoa, quando precisamos dizer: “Você é maravilhoso e você é meu”, quando precisamos ampliar a nós mesmos por meio da nossa conexão com algum ser perfeito e onipotente, quando precisamos que um progenitor funcione como esse ideal. (Isso significa a calma e a confiança que o progenitor pode oferecer à criança, a infusão de glória, poder e força, uma proteção que diz: “Estou aqui – você não precisa fazer tudo sozinho”, uma disposição para ser um aliado invencível. O que certamente não significa que o pai ou a mãe devam ser super-heróis).
Há uma época da nossa vida – na primeira infância – em que precisamos ser maiores do que a vida, ter um eu de ouro. E precisamos acreditar que nosso verdadeiro eu – o eu ávido, jubiloso, vaidoso que revelamos – é aceito, pelo menos por algum tempo, como feito de ouro.
Quando nossos pais podem fazer isso por nós – não o tempo todo, apenas uma vez ou outra, apenas... o suficiente -, então servindo como partes de nós mesmos que podemos tornar nossas. E, providos desses ingredientes vitais para a edificação do eu, podemos então nos libertar – podemos modelar e transformar esses ingredientes em algo mais real, com dimensões mais humanas.
Uma auto-imagem positiva.
Uma auto-estima resistente.
E um amor por nós mesmos que nos liberta para amar os outros.
Mas, sem essa dose de narcisismo, ficamos presos ao narcisismo infantil e arcaico. Não podemos prosseguir. Não podemos deixar para trás. Outros podem então nos servir, não como parceiros humanos num relacionamento afetivo, mas como meios de nos fornecer essas peças que faltam ao nosso eu. Assim, o narcisista procura pessoas admiradas, na esperança de transferir para ele essa admiração. O narcisista procura os poderosos, esperando fazer seu esse poder. Entretanto, como observa Kohut, essas pessoas procuradas “não são amadas ou admiradas por seus atributos, e características reais das suas personalidades... mal são notadas”. Na verdade, não são realmente amigos, amantes, companheiros no matrimônio ou filhos, mas partes do eu narcisista – somente “objetos desse eu”.
A descrição completa de uma personalidade narcisista – nós a chamaremos de Peggy – pode mostrar que ela é cheia de vida e intensa, romantizando e sexualizando todos os fatos comuns da vida, superentusiástica e superdramática. Sob toda essa pseudo-vitalidade ávida de ser completada, um medo terrível que se define por: “O que significa tudo isto?”. E, por trás dos gestos e das roupas que gritam com insistência: “Olhem para mim!”, existem sentimentos de falta de autenticidade e de valor.
Peggy evita a dependência. Tem pavor da intimidade. Usa as pessoas como se fossem lenços de papel. Sempre em movimento, tenta fugir do pavor da velhice e da mortalidade. E, sem elos reais com o futuro e com o passado, sem aqueles investimentos afetivos em outras pessoas, aquelas lembranças queridas, ela vive um ‘agora’ dominado pela ansiedade.
Examina o rosto todas as manhãs, para verificar se apareceu alguma ruga.
Mantém sua agenda repleta para todas as noites da semana.
Constantemente consulta médicos, com sua hipocondria crônica e impertinente.
E está sempre repleta de raiva, a raiva da criança desapontada que não encontrou empatia em lugar nenhum.
Conheci um homem – vamos chama-lo de Don – com outro tipo de narcisismo. Compulsivamente, conquistava as mulheres e ia com elas para cama. Seu maior orgulho era contar que, durante uma noite exaustiva, havia dormido com três mulheres diferentes em três bairros diferentes, “fazendo uso” – foi no tempo do racionamento da gasolina – “somente de transportes públicos”.
No seu relacionamento com as mulheres, Don as converte, repetidamente, em idealizações. Todas eram belas, brilhantes e – sempre! – possuidoras de grande profundidade espiritual. Sua desilusão subsequente, em geral imediata, o fazia sair à procura de substitutas. Teve muitas esposas, muitas amantes e não conheceu nenhuma delas.
Meu narcisista fictício preferido não é um homem, mas um sapo. Ele pode ser encontrado em ‘Archy and mehitabel’. Seu nome é Warty Bliggens e costuma ficar debaixo de um cogumelo, perfeitamente satisfeito, e
considera-se
o centro do...
universo
a terra existe
para cultivar cogumelos para ele
sentar sob eles
o sol para lhe dar luz
durante o dia e a lua
e as constelações rodopiantes
para embelezar
a noite só para
Warty Bliggens.
Que tal a grandiosidade?
Alguns narcisistas demonstram uma grandiosidade do tipo “Sou o maior!”. Outros são grandiosos de modo mais indireto. Mas sua empáfia e seu desprezo, ou sua promiscuidade e comportamento anti-social ou as mentiras sobre suas realizações, ou ainda a incapacidade de dizer, “não sei”, sugerem um mundo de fantasia onde pensam que sabem tudo e tudo controlam, onde ‘tudo’ lhes é permitido, e onde são muito especiais. ‘Muito’ especiais.
Para uma ideia desse senso de ser especial, vejamos este sonho contado por um paciente ao seu psiquiatra:
“Foi colocada a questão de se encontrar um sucessor para mim. Então pensei: Que tal Deus?”.
O problema da mania de grandeza é a sua vulnerabilidade. É implacável e inevitavelmente vulnerável. Pois, por mais triunfantes que sejamos, por mais alto que cheguemos, o curso da vida normal nos conduz a perdas. As doenças. A velhice. As limitações físicas e mentais. As separações, solidão e morte. São experiências difíceis – mesmo com família, filosofia e religião, mesmo com elos que nos unem a algo além da carne frágil. Entretanto, sem esses elos, sem algum imenso significado para além do “eu”, a passagem do tempo só pode trazer horror sobre horror. Em face dessa realidade ao longo prazo, é espantoso como o narcisista pode negá-la durante tanto tempo, convencido de que a juventude e a beleza, a saúde e o poder, a admiração e a afirmação vão durar para sempre.
É claro que não duram.
Quando o talento falha, quando fenece a beleza, quando a carreira brilhante declina, o mundo não reflete mais a perfeição de Narciso. E como o eu no espelho é o único que ele sempre reconheceu, perde esse eu e mergulha na depressão. A depressão – o outro lado escuro da grandeza – é a resposta adequada à auto-estima ferida do narcisista, gerada por algo trivial ou um pequeno desapontamento, bem como pelas reais e mais duras realidades da vida.
“Todos os seus espelhos substitutos estavam quebrados”, escreve um analista sobre uma paciente deprimida que começava a envelhecer, “e lá estava ela, outra vez desamparada e confusa, como a garotinha que antes, na frente do rosto da mãe, não encontrou a si mesma...”
O narcisista pode também sentir-se vazio e deprimido, sempre que perde os objetos idealizados do próprio eu. Tendo feito deles a fonte de tudo o que é poderoso e feliz, sente-se agora desamparado e vazio sem eles. E pode procurar fugir desse vazio recorrendo a drogas ou ao álcool, a frenéticas conquistas sexuais, a passatempos perigosos. Ou pode procurar o refúgio narcisista comum de algum culto religioso, onde “o envolvimento total, a rotina infindável, o canto compulsivo, busca incessante de eventos sociais e a meditação ritual” ajudam a encher “vazios quase inimagináveis...”
Como parte de um todo mágico, místico, que afirma possuir o esclarecimento perfeito, ele tenta encontrar um modo de engrandecer o eu. Como parte de um todo feliz e abençoado que afasta “pensamentos negativos”, tenta recapturar o encanto do narcisismo infantil.
No centro dessas falhas narcisistas existem experiências com pais indiferentes; pais que não podiam ou não queriam ser acessíveis, pais que rejeitavam, desaprovavam ou desapontavam, ou no seu impressionante poema “Realizações”, registra a aflição de uma filha tentando conseguir a confirmação da mãe:
Pintei um quadro – céu verde – e mostrei a minha mãe.
Ela disse: bonito, eu acho.
Então pintei outro, segurando o pincel com os dentes.
Veja, mamãe, sem as mãos. E ela disse:
Acho que alguém poderá admirar isso, se souber
Como foi feito, e se se interessar por pintura, o que não é o meu caso.
Toquei um solo de clarineta no ‘Concerto pra Clarineta’ de Gounod.
Com a Filarmônica de Buffalo. Minha mãe foi ouvir e disse:
Bonito, eu acho.
Então toquei com a Sinfônica de Boston
Deitada de costas e usando os dedos dos pés.
Veja, mamãe, sem as mãos. E ela disse:
Acho que alguém poderá admirar isso, se souber
Como foi feito, e se estiver interessado em música, o que não é o meu caso.
Fiz um suflê de amêndoas e o servi a minha mãe.
Ela disse: acho que está bom.
Então fiz outro, batendo com minha respiração.
E servindo-o com os cotovelos.
Veja, mamãe, sem as mãos. E ela disse:
Acho que alguém poderá admirar isso, se souber
Como foi feito, e se estiver interessado em comida, o que não é o meu caso.
Então esterilizei os pulsos, realizei a amputação, joguei fora
Minhas mãos, e fui até minha mãe, mas antes que eu pudesse dizer
Veja, mamãe, sem as mãos, ela disse:
Tenho um presente para você, e insistiu em que eu experimentasse
As luvas azuis, para ter certeza de que eram do tamanho certo.
Às vezes, o confuso narcisista teve pais que ofereciam amor, só que... o amor que ofereciam era do tipo errado. Não era amor pela criança por ela mesma, mas pela criança-como-enfeite, uma flor que os enfeitava, colocada na lapela.
Geralmente, narcisista são filhos de narcisistas.
Os pais narcisistas usam e abusam inconscientemente dos filhos. Faça direito. Sejam bons. Quero me orgulhar de você. Não me irrite. O trato tácito é o seguinte: se enterrar as partes que não gosto então posso amá-lo. A escolha tácita é a seguinte: perder você ou me perder.
É importante não esquecer que, às vezes, pais bastante bons não conseguem se entrosar com o filho, e o prejuízo causado pode resultar de uma infeliz falta de comunicação, e não de indiferença, incompetência ou maldade. Mas, seja qual for a causa, a ausência dessas experiências cruciais de imitação e idealização põe em perigo a coesão do eu. Defendendo-se da ameaça conta esse eu, e tentando urgentemente compensar a falha, nasce o narcisista patológico.
Sem dúvida, nós todos, durante nosso desenvolvimento normal, tivemos experiências de um falso eu, de separação em duas partes, com nosso eu. Nós todos tivemos experiências do tipo: “Por que eu disse aquilo? Não é o que eu penso realmente”, de abrigar eus distintamente contrários, de tentar esconder nossos eus inaceitáveis, de agir como pessoas diferentes com pessoas diferentes.
Mas as pessoas descritas nas páginas anteriores demonstram mais do que as distorções comuns, mais do que as confusões e incertezas no seu desenvolvimento, que interfere com suas perdas necessárias – com a renúncia de necessidades, defesas, ilusões que se interpõem no caminho de um eu robusto e integrado.
Pois um crescimento saudável implica a capacidade de renunciar a nossa necessidade de aprovação, quando o preço dessa aprovação é nosso verdadeiro eu.
Significa ser capaz de renunciar à divisão defensiva, e integrar nosso eu mau com o eu bom.
Significa ser capaz de renunciar à grandeza e funcionar com um eu de proporções humanas.
Significa que, embora possamos, durante a vida, ser afligidos por dificuldades emocionais, possuímos um eu confiável, um senso de identidade.
O que chamamos de senso de identidade é a certeza de que nosso eu mais profundo, mais forte e mais verdadeiro persiste através do tempo, a despeito da mudança constante. É a sensação de um eu verdadeiro mais profundo do que qualquer diferença, o eu para o qual todos os nossos outros eus convergem. Essa uniformidade firme inclui tanto o que somos, quanto o que não somos. Inclui nossas identificações e nossas diferenças. E inclui também nossas experiências interiores e particulares do tipo: “Eu sou eu”, bem como o reconhecimento pelos outros de que: “Sim, você é você”.
Esse apoio e resposta dos outros é importante em qualquer época da vida, mas tem importância especial na infância. Pois nenhum de nós pode começar a ter um “eu” sem alguma ajuda de “outros”. Todos nós, no começo, precisamos de uma mãe que nos ajuda a ser, a mãe que nos ajuda a estender o braço e reclamar o que nos pertence, a mãe que nos ajuda estabelecer uma certeza central – tão certa quanto às batidas do nosso coração – de que nossos desejos e sentimentos são nossos. No começo, não conseguimos satisfazer, portanto, não conseguimos reconhecer nossas necessidades. A mãe ajuda a criança a satisfazê-las e conhece-las.
Reconhecendo nossas necessidades, reclamando nossos sentimentos como nossa propriedade, começamos a perceber o nascimento do nosso eu. Perdemos a não-consciência de nós mesmos, a existência sem um eu, sem uma identidade.
Começamos a criar e a descobrir nosso “eu” particular.
Judith Viorst
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