Em entrevista ao jornalista Alex Solnik, o escritor best-seller Frei Betto afirma que, com a decisão de aceitar o pedido de impeachment, "Eduardo Cunha tentou chantagear o PT e quebrou a cara"; para ele, o processo de impedimento da presidente Dilma "não tem futuro"; apesar de tecer críticas aos governos petistas, de um dos quais participou diretamente, o religioso acredita que na mesa da Santa Ceia, "Lula é o Messias", "Dilma é a discípula que deveria ouvir mais o Mestre" e "Cunha é o Judas"; Frei Betto também disse que, apesar de o impeachment ser uma página virada, enquanto Cunha não for afastado da presidência da Câmara "a turbulência não cessará"
Escritor best-seller – "Fidel e a religião" vendeu mais de 3 milhões de exemplares em todo o mundo e foi o presente de Fidel ao Papa Francisco na visita a Cuba – Frei Betto poderia ter sido diretor de teatro ou político, mas preferiu, ao contrário de seus conterrâneos Betinho e Henfil que também como ele ingressaram na JEC – Juventude de Esquerda Católica – continuar cumprindo os votos de pobreza e de castidade exigidos por sua Ordem, a dos Dominicanos. Nunca se arrependeu, ao contrário, como revela nessa entrevista exclusiva a 247. Apesar de tecer críticas aos governos petistas, de um dos quais participou diretamente, ele acredita que na mesa da Santa Ceia, "Lula é o Messias", "Dilma é a discípula que deveria ouvir mais o Mestre" e "Cunha é o Judas". Ele também disse que, apesar de o impeachment ser uma página virada, enquanto Cunha não for afastado da presidência da Câmara dos Deputados "a turbulência não cessará". Frei Betto afirmou também que tanto o Papa Francisco quanto Jesus "são de esquerda".
O que achou da decisão de Cunha de deflagrar o impeachment?
Eduardo Cunha tentou chantagear o PT e quebrou a cara. Acredito que o processo de impeachment a Dilma não tem futuro. Impeachment é mero revanchismo de quem não assume a derrota.
O que diz a tua bola de cristal sobre os próximos dias?
Acho que haverá manifestações pró e contra o impeachment. Já o Eduardo Cunha, que só tem apoio de quem tem rabo preso com ele, vai dançar. Mas enquanto ele não for afastado da presidência da Câmara dos Deputados haverá turbulência.
Na Santa Ceia, quem seriam Dilma, Lula, Michel Temer, Cunha, Renan Calheiros?
Lula ainda é o Messias que, na esperança de muitos, poderia salvar o Brasil do retrocesso, e promover a partilha do pão e do vinho, da comida e da bebida. Dilma, a discípula que deveria dar ouvidos ao Mestre. Temer, o apóstolo que aguarda pacientemente a oportunidade de ocupar o lugar do Mestre. Renan, o discípulo que ora fica ao lado do Mestre, ora de Caifás. E Cunha, o Judas, que se vendeu por 30 dinheiros...
Por que e como Cunha se aguenta no poder apesar de ser o Judas?
Porque muitos deputados e senadores têm o rabo preso nas mãos dele.
Havia luta pelo poder entre os discípulos de Cristo?
Basta ler a Carta dos Gálatas, do apóstolo Paulo, para constatar a disputa pelo poder entre ele e Pedro. Onde há poder sempre haverá disputa.
Como era a disputa entre Pedro e Paulo?
Paulo acusou Pedro, na Carta aos Gálatas, de ser cínico, comportar-se como judeu, embora fosse discípulo de Jesus, e ainda discriminar os pagãos. Para Paulo, judeu que passara a ser cristão não tinha mais que observar os preceitos judaicos.
Que analogia pode ser feita entre o momento político brasileiro e o Natal?
Natal significa nascimento e o momento político brasileiro é fúnebre, de morte de um modelo desenvolvimentista-consumista que chegou ao seu limite.
Então é o caso de trocar o ministro da Fazenda?
Não adianta mudar o ministro da Fazenda se não for modificado o projeto político rentista, mais voltado ao mercado externo do que ao interno, dependente de investimentos externos. O Brasil só renascerá, e viverá seu novo Natal, se promover reformas estruturais profundas, como a agrária e a tributária, priorizando o mercado interno e a redução das desigualdades sociais.
Que presente o Papai Noel deveria dar para Dilma?
A ousadia de fazer o que Evo Morales fez na Bolívia: priorizar, em seu arco de alianças, os movimentos sociais – raiz e razão de ser do PT.
De que forma o governo Dilma poderá chegar a 2018?
Como um carro atolado em suas próprias contradições.
Quais são as contradições do governo Dilma? Como ela é vista nos movimentos populares?
Dilma não mantém diálogo permanente com nenhum setor da sociedade brasileira, nem com os movimentos sociais, nem com o Congresso. Parece ter terceirizado a política para o PMDB e a economia em mãos de Joaquim Levy. Os movimentos sociais são críticos ao governo dela, sobretudo devido ao ajuste fiscal que penaliza principalmente os mais pobres.
Você vê semelhança entre o momento atual e algum outro da história recente do Brasil?
Sim, após o fracassado governo Sarney, quando o país entrou em crise aguda, com recessão e inflação altíssima, e o poder foi disputado por Collor, Lula e Brizola.
Lula é o novo Getúlio ou o novo Fidel?
Ele tem, dos dois, o talento oratório, a capacidade de argumentar, o carisma de empatia com o povão, e a opção preferencial por políticas sociais.
Você continua próximo a Lula, conversa com ele ou está afastado?
Continuamos amigos. Tivemos uma boa e longa conversa no Instituto Lula dia 23 de julho. E sobre isso não falo.
Acredita que Lula fez tudo certo no governo e sofre campanha moralista ou tem alguma culpa no cartório?
Os governos Lula foram os melhores de nossa história republicana. Os que mais tiraram pessoas da miséria e da fome. No entanto, cometeram muitos equívocos que aponto em dois livros sobre o período, ambos da editora Rocco: "A mosca azul - reflexão sobre o poder" e "Calendário do poder", meu diário de dois anos de Planalto (2003-2004).
Quais foram os equívocos dos governos Lula?
Entre muitos acertos, os governos Lula cometeram os equívocos de facilitar à população acesso aos bens pessoais (linha branca, carro, crédito etc) e não aos bens sociais (educação, saúde, segurança, transporte, saneamento etc); não complementaram a inclusão econômica com a política; não fortaleceram o protagonismo dos movimentos sociais e da imprensa alternativa.
O fato de ele ter ganho muito dinheiro o desqualifica como interlocutor do povo brasileiro ou não muda nada?
Ganhou honestamente, e isso não é ilegal nem é pecado. Os acusadores que apresentem o ônus das provas.
Muita gente acha que Lula e FHC deveriam fumar o cachimbo da paz para pacificar petistas e tucanos pois a agitação política provoca a instabilidade econômica. Você concorda?
Não. A crise brasileira não se resolve com diálogo entre caciques. O diálogo deve ser entre Dilma e movimentos sociais, que estão na origem do PT e garantiram a vitória dela em 2014. Mas ela prefere dialogar com o Congresso, aquela casa na qual Lula denunciou "300 picaretas"...
Você conversou muito com Fidel, o que ele pensa sobre o Brasil, sobre Lula, sobre Fernando Henrique?
Ele é um gênio da política. Por isso, apenas faz perguntas. E nunca manifesta o que pensa quando há o risco de afetar suas relações políticas.
Que perguntas ele te fez?
Não trato publicamente de conversas pessoais.
Você conhece bem Fidel e Lula. Quais são as semelhanças entre os dois?
Eu acho que os dois são pessoas carismáticas. Os dois têm uma relação cordial com as pessoas. Não são racionalistas, raciocinam mais com o coração que com a cabeça. São pessoas afetuosas no contato pessoal, é isso que cativa muita gente. Fidel é uma pessoa que sabe escutar. Ele jamais encontra alguém para conversar por dez minutos. Por isso ele não dá audiência para ninguém. Ele é que escolhe com quem vai conversar e no mínimo ele fica uma hora com a pessoa. E Lula é um pouco assim também. É alguém que, você conversando com ele, fica amigo de infância dele em cinco minutos. Tem essa coisa afetuosa sem prepotência, sem achar que é o dono da verdade.
O que acha da participação cada vez maior dos evangélicos na política? É legítima?
Qualquer participação é legítima, desde que não queira impor ao conjunto da sociedade valores e preceitos que são próprios de um determinado segmento religioso. Isso é fundamentalismo. Evangélicos e católicos, entre os quais me incluo, precisam passar da fé em Jesus para a fé de Jesus!
Me explica uma coisa como é possível haver tantas demonstrações de ódio entre petistas e não-petistas como vemos principalmente na internet se o Brasil é um país muito religioso e as religiões pregam o amor e não o ódio?
Uma coisa é crer, outra, viver o que se crê. Não esqueça que as maiores atrocidades da história foram cometidas por países predominantemente cristãos - Inquisição, nazismo, colonialismo, bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, duas grandes guerras etc. E essa gente "religiosa" não presta atenção no que Shakespeare disse magistralmente: "O ódio é um veneno que você toma esperando que o outro morra."
Durante a ditadura os artistas e a sociedade civil estavam unidos na luta por eleições diretas. Por que agora os artistas estão desunidos? Ou silenciosos em relação às tentativas de derrubar a presidente?
Em geral, os artistas são inteligentes. E sabem que Dilma não vai cair.
Por que você nunca quis ser deputado ou senador?
Porque não tenho vocação para funções políticas institucionais. Sou um feliz ING - Indivíduo Não Governamental.
Você recebeu algum retorno do papa depois que ele ganhou do Fidel um exemplar de "Fidel e a religião"?
Não. Uma nova edição brasileira do livro sairá em 2016 pela Companhia das Letras.
Há papas "de direita" e "de esquerda"? O atual é de direita ou de esquerda?
Se ser de esquerda é indignar-se com a desigualdade social, Francisco é de esquerda. Graças a Deus!
Numa licença poética poderíamos dizer que Deus é de esquerda?
Jesus sim, sem dúvida. E por isso morreu como prisioneiro político: preso, torturado, julgado por dois poderes políticos e condenado à pena de morte dos romanos, a cruz.
O principal problema da Igreja Católica é a pedofilia como diz a mídia?
Não, embora seja um grave problema, que deve ser rigorosamente coibido e punido. O principal problema é o clericalismo, padres e bispos convencidos de que suas funções os promovem acima do comum dos mortais, e não terem a mesma sensibilidade de Jesus diante da miséria e da opressão.
Você é um padre?
Não, eu sou um religioso. Veja bem: nos dominicanos você tem os frades que se ordenam sacerdotes e continuam sendo chamados de frei e tem os frades que são só religiosos, que têm os votos, mas não são ordenados. Eu não posso celebrar missa. Por opção. Mas eu sou um pregador, um evangelizador, um homem da palavra. Eu tenho voto de pobreza e voto de castidade.
É melhor viver sem mulher?
Olha, é difícil dizer isso, mas partindo da minha experiência, eu te falo sinceramente: eu não tenho saudade da família que não constituí... Eu não generalizo isso, nem quero estabelecer comparações, mas, a vida religiosa, a minha vida celibatária me dá uma liberdade muito grande! E eu me sinto muito amado. Sabe, na vida, a questão é afeto. Então, isso realmente me dá uma saúde e uma felicidade muito grande. Além do que, eu não vivo mergulhado numa cultura nem de pornografia nem de erotismo, então, essa questão, também, eu acho que tem muito a ver com qual é o meu alimento interior. E uma das coisas que além de escrever... as duas coisas que eu mais gosto de fazer são: escrever e orar. Não posso passar um dia sem pelo menos meia hora de meditação. Porque é como se eu pulasse o almoço, pulasse o café da manhã, deixasse de tomar banho naquele dia.
Você nunca teve mulher?
Não, eu namorei quando era adolescente...
Antes dos votos? Com quantos anos você fez voto de castidade?
Eu fiz com 20 anos...
Quer dizer: não é que você não tenha tido experiência sexual... você teve, antes dos votos...
Ah, tive namoradas... como adolescente comum que viveu em Belo Horizonte, depois no Rio...
Mas você nunca namorou pensando em se casar?
Não.
Por que? Não te atraía o sexo?
Aos 16 anos já começou a me inquietar essa coisa da vocação. Eu achava que Deus queria isso, que meu projeto no mundo era esse, por causa do contato que a gente tinha com os dominicanos. Eu era da JEC-Juventude de Esquerda Católica. Betinho também... o Henriquinho, que depois virou o Henfil. Muitos entraram para o convento. Muitos saíram depois. Mas toda uma geração da JEC resolveu ser frade dominicano empolgado pelo estilo de vida, pela cabeça. Eu entrei para sair, não entrei para ficar. Eu não queria chegar aos 40 anos falando: pô, acho que Deus queria que eu fosse padre, mas eu não tive coragem. Falei: então vou entrar, porque aí eu tiro a limpo. E me empolguei, me encontrei, sou feliz. A única crise de vocação que eu tive foi quando eu trabalhei no Teatro Oficina – fui assistente de direção do Zé Celso no Rei da Vela... Disso sim, tenho saudades. Foi um período de muita efervescência cultural e criatividade. Não sei como conseguia dormir em 1967: aulas de filosofia pela manhã, repórter da Folha da Tarde no período vespertino, Teatro Oficina em seguida e, em meio a tudo isso, subversão via ALN de Marighella... O "Rei da Vela" é um marco histórico no teatro brasileiro e criou o tropicalismo. Foi um privilégio viver a empolgação pelo espetáculo. E fiquei muito tentado em me tornar diretor de teatro.
Mas aquilo era uma esbórnia! Por isso você saiu...
Não, não foi pela esbórnia. O pessoal até brincava muito comigo. Mas era muito mais sadio do que aparentava. Mas o que aconteceu é que eu descobri que tinha vocação para diretor de teatro. E aí eu vi que era incompatível. Os dominicanos procuram ao máximo viver do seu trabalho. Não temos fazenda, gráfica, prédios alugados. Outras congregações e ordens têm, nós não temos. Por opção. Vivemos do próprio trabalho. E eu sempre vivi do jornalismo e da literatura. Isso é compatível. Mas o teatro não é: o teatro é um sacerdócio...
Ahhh....
A dedicação é total. Durante cinco meses, é dia e noite...naquilo... você não pode pensar em outra coisa. Zé Celso foi meu mestre, mas muitas vezes ele deixava nas minhas mãos o trabalho com os atores. E eu descobri que tinha muita facilidade para aquilo.
No teatro certamente você não iria cumprir o voto de castidade...
Eu não sei...
O apelo seria muito forte...
Eu não sei... mas não é uma questão relevante, realmente não é. Eu me lembro que o Narciso Kalili, da Realidade veio fazer uma matéria aqui. Ele era completamente agnóstico. "Vou ficar 15 dias aqui dentro junto com vocês vivendo como vocês". No terceiro dia, ele andava para um lado e para o outro. Eu perguntei: o que que está havendo? "Ô, cara, eu estou pirado! Não tenho dormido. Porque não é possível que vocês vivam felizes! Eu pensei que ia encontrar gente pulando o muro de madrugada, mulheres... vocês conseguem ser felizes assim?!" Foi preciso Roberto Freire, que também era da Realidade e psicanalista, dar um apoio clínico para o Narciso porque ele estava pirado, literalmente pirado.
Mas você não sente atração sexual?
Claro que sinto, é normal, como qualquer ser humano. Padre não é assexuado.
E o que você faz nessa hora?
Eu canalizo para Deus...
Tem mulheres que assediam você?
Isso tem, é comum. Aconteceu uma vez mais forte, mas não foi tão difícil escapar porque ela era muito feia.
Mas teve alguma mulher que literalmente atacou você sexualmente?
Não, assim também não. O que é mais comum, o que tem mais são mulheres que tentam se aproximar para tomar conta de mim. Mas eu prezo muito a minha liberdade.
Você concorda com o celibato na igreja?
A minha posição é muito clara: eu acho que o celibato deve acabar na igreja como medida obrigatória. Então você terá aqueles que têm vocação, continuarão celibatários, como na igreja primitiva e aqueles que são casados, e são ordenados sacerdotes, como os pastores da igreja evangélica. Além do que, eu também defendo a ordenação de mulheres. Solteiras e casadas. Eu acho que não há nenhum fundamento teológico, bíblico, que impeça isso. Se Jesus não teve uma apóstola, foi pela mesma razão que ele não condenou a energia nuclear. Seria uma extrapolação total da cultura em que ele vivia. Mas Pedro era casado. Tanto que Jesus curou a sogra de Pedro. Se Pedro gostou ou não, não sei, não vou entrar nesses detalhes da intimidade dele. Mas se Jesus curou a sogra de Pedro é porque Pedro era casado. E Jesus não só o escolheu como apóstolo como o escolheu como líder do grupo. Ou seja: preconceito em relação ao sacerdócio do homem casado Jesus certamente não tinha.
Se houvesse essa opção, você se casaria?
Não, eu continuaria na minha. Continuaria porque a essa altura da vida...
Mas pode namorar. Não precisa casar...
Não... não... Já esquento a cabeça com muita coisa. A gente se mete muito - no bom sentido - a gente se envolve muito na vida das pessoas... família... amigos... separações...Eu falo para o meu irmão, que é psicanalista: a diferença entre nós dois é que você marca hora e eu não; você cobra, e eu não. Você não sabe os dramas que eu ouço aqui nessa sala.
De tanto ouvir esses dramas, você preferiu o celibato...
É a minha opção. Tem uma coisa muito clara para mim: a minha luta, hoje, é por ter mais tempo para me dedicar à literatura. E a literatura é um ato solitário. Eu me sinto muito feliz quando chegam aqueles dias que eu tiro só para escrever. Então, vou para o sítio de um amigo, fico rezando, faço minha ginástica, leio, escrevo, sou dono do horário, eu mesmo cozinho, eu não sou um gourmet, sou um "gourmãe"...Minha mãe, Maria Stella Libânio Christo é a maior especialista em culinária mineira. E eu herdei essa vocação, tenho um livro de culinária – Comer como frade, divinas receitas para quem sabe porque temos o céu na boca... O que eu queria da vida, a vida me deu...
Você nunca quis ter filho?
Não, nunca quis ter filho, nunca quis ter poder, nunca quis ter mandato, nunca quis ter dinheiro. A maior tentação não é a tentação do sexo, nem do dinheiro; é a tentação do poder. Realmente, não quis, porque tive várias oportunidades de ter tudo isso, mas não tenho a menor veleidade...
E não se arrepende?
Nem me arrependo. Pelo contrário: me regozijo por ter dito não a situações que me teriam levado a poder, a dinheiro, não sei o que. Agradeço a Deus por ter dito não a essas situações.
Você acha que dinheiro dá confusão?
Não é confusão. Eu vejo muitos amigos que são escravos dessa coisa de dinheiro. Vira uma bola de neve. O cara tem dinheiro, aí já quer fazer uma casa na praia, tem que manter a casa e tem que ter um outro carro, sabe, começa um negócio de que o cara tem que estar num certo padrão de vida e se reduz ele fica humilhado, se sente mal. Eu não quero que bens materiais determinem a oscilação do meu estado de humor, meu temperamento, meu estado psíquico. Eu tenho o meu Golzinho que ao mesmo tempo serve à comunidade, eu estou muito feliz, preciso de muito pouco para viver, às vezes com o dinheiro que eu ganho de palestras e direitos autorais eu ajudo os movimentos pastorais que eu acompanho...
Agora, como é que você, um religioso, amante da paz, um cara preocupado em ajudar, foi se envolver na luta armada em 1968?
Naquele momento nós achávamos que não havia outra forma de luta, de resistência, todos os meios pacíficos estavam esgotados. E há um princípio na teologia, um princípio medieval nosso do confrade Tomás de Aquino. Chama-se Princípio do Tiranicídio. São Tomás diz o seguinte: em caso do tirano que oprime o povo causando a morte de muitas pessoas se a morte desse tirano significar o bem do povo é legitimo esse combate. Com base nesse princípio, nós colaboramos – nunca pegamos em armas, mas colaboramos – com a ALN, a VPR, a VAR-Palmares, com uma série de organizações, com o Partidão, muito, com a Ação Popular. Eles se abrigavam aqui no convento...
O convento foi invadido pelo Exército?
Foi invadido na nossa prisão. Eu fui preso no Rio Grande do Sul, depois de passar pela fronteira 11 militantes ligados ao Marighela, inclusive o braço-direito dele, Joaquim Câmara Ferreira, que foi quem teve a ideia de sequestrar o embaixador americano. Mas quando prenderam Ivo e Fernando invadiram o convento aqui e prenderam vários frades. Então, esse era o princípio de que era um recurso legal e teologicamente aceito pela igreja até hoje. Mas veja bem: eu sou contra o terrorismo em qualquer circunstância. Mesmo que seja praticado pela esquerda. Por uma razão simples: o terrorismo nunca favoreceu a causa dos pobres. Sempre favorece a extrema-direita. Sempre é um prato cheio para justificar o terrorismo de extrema-direita.
Você conheceu bem Marighela? Você acha que ele seria o líder se a luta armada tivesse vencido?
Prefiro não raciocinar sobre hipóteses, sobretudo hipóteses "achistas". Sim, conheci Marighella e o tenho na conta de um dos principais heróis brasileiros, que entregou sua vida para que tivessem uma nação mais livre e justa. Os detalhes de minha relação com ele estão em meu livro "Batismo de Sangue" (Rocco).
Os superiores de vocês sabiam que vocês estavam escondendo o pessoal da luta armada? Vocês esconderam só eles ou armas também?
Nunca pegamos em armas. Sim, conforme descrevo no meu livro "Diário de Fernando - nos cárceres da ditadura militar brasileira" (Rocco) e em "Batismo de Sangue", nossos superiores sabiam de nossa participação na resistência à ditadura militar.
Como foi a história da morte do Marighela? Ele ia se encontrar com algum frade? É verdade que quem deu a pista para a polícia foi um dos frades presos?
Todos os detalhes estão em "Batismo de Sangue" e no livro de biografia de Mario Magalhâes, "Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo" (Companhia das Letras). Nenhum frade foi responsável pela cilada na qual Marighella foi assassinado pela polícia.
Você estava preparado para ser preso? Para resistir à tortura? Quanto tempo você foi torturado?
Ninguém está preparado para ser preso e muito menos torturado. Fui torturado em minha primeira prisão, no CENIMAR, no Rio, em junho de 1964. Em 1969, ao ser preso pela segunda vez após 7 dias foragido, me livrei da tortura graças à intervenção de um tio general.
Como foi o fim do Frei Tito?
Devido às torturas que sofreu, foi levado ao suicídio em agosto de 1974, quando se encontrava exilado na França. Os detalhes estão em "Batismo de Sangue" e na biografia dele, "Um homem torturado - nos passos de frei Tito de Alencar Lima", de Leneide Duarte (Civilização Brasileira).
O que vai acontecer com a vitória de Macri na Argentina? Podemos prever turbulências na América Latina?
Temo ser o começo do fim da fase de governos progressistas na América Latina. Agora Brasil e Venezuela estão no alvo dos neoliberais. Os governos progressistas, com todos os avanços, como a redução da miséria, e conquistas, como integração continental, cometeram o erro de não complementar a inclusão econômica que propiciaram com a inclusão política. Formaram consumistas e não protagonistas políticos.
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