Rachado politicamente, nem o futebol da seleção de Tite une o país às vésperas do mundial da Rússia
“Sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor...” O eco das arquibancadas de 2014 parece soar estranho no momento. Você vai torcer, secar ou não está nem aí para a seleção brasileira? Segundo meu instituto Databoteco, a indiferença domina o chão da praça. Nem o Pacheco, aquele personagem fanático inventado pela Gillete nos anos 1980, está alerta. Vai ter Copa? Pelo tanque vazio de esperança e o saco cheio da realidade, a brava gente parece indisposta a gastar galões de tinta verde e amarela pelas ruas do país.
Nem o Alzirão, tradicional sede da pátria em chuteiras no bairro carioca da Tijuca, está enfeitado neste momento. Tampouco há bandeirolas na praça central de Nova Olinda (CE), onde fiz a farra de criança, na Copa de 70, no meio de uma multidão que tentava enxergar em uma TV de 14 polegadas, os lançamentos do Gerson, o canhotinha de ouro.
A polarização, óbvio ululante, ajuda a entornar o caldo da feijoada. Não tem jeito, caríssimo Juan Arias, a política envenena a nação até na alegria da Copa, ao contrário da sua sensata torcida pela unanimidade aqui nas páginas do EL PAÍS.
Há quem se recuse a vestir a camisa canarinho da CBF, modelo oficial dos manifestoches do impeachment -farsa épica dramatizada na pedagogia do samba da Paraíso do Tuiuti.
Ah, bobagem, meu bem, dizem outros: não misturo futebol e política, mesmo sendo contra tudo que está aí no cenário e no horizonte, vou vibrar sim pelo hexacampeonato, faz mais um pra gente vê, menino Jesus. É apenas uma competição de futebol, sem essa de mané-pátria-em-chuteiras.
Há quem simplesmente ainda não superou o trauma do 7x1 e desconfie, mesmo depois de todo discurso da autoajuda publicitária do Tite, da capacidade da equipe. A turma do “sei não, viu...”
Nessa feira patriótica de Acari, tem “de um tudo”. A patota da “intervenção militar” deve pedir a tortura para os secadores da seleção, esse bando de comunista, vai pra Venezuela, vai pra Cuba. Felipe Melo já como capitão do time Brasil na Rússia -o palmeirense é eleitor declarado de Jair Bolsonaro.
No túnel dialético do tempo, o debate nos leva novamente à Copa de 1970 disputada no México. A esquerda brasileira ficou na bola dividida. Para os mais radicais, torcer pelo timaço de Jairzinho, Pelé, Tostão e Rivelino seria compactuar com a ditadura que arrepiava nos porões e censurava até livros sobre o cubismo -sim, o movimento artístico de vanguarda.
Uma moçada vermelha desobedecia, mesmo sob vigilante patrulha ideológica, a cartilha gauche das boas maneiras. Em artigo recente na revista Carta Capital, o jornalista Nirlando Beirão faz um bate-bola comparado e com estilo das duas situações, recomendo a leitura: “Para alguém que torceu a favor em 1970, chancelar em 2018 a hipocrisia, a burrice e a vulgaridade que passaram a exalar da pátria em chuteiras é missão ironicamente mais dolorida que da época da ditadura. Em 1970, o povo ainda desabafava no futebol uma alegria asfixiada, mas esperançosa. Em 2018, o futebol exprime a mediocridade turbulenta de um país que perdeu o rumo - em parte pela cegueira suicida de seu próprio povo. Uma gente sempre disposta a culpar 'os políticos', mas prestes a confirmar de novo, em outubro, os piores pilantras no Parlamento de Brasília.”
Você vai torcer ou secar? Eis a questão da hora. O caso não é simples ou esquemático. Guarda uma complexidade que lembra o drible do elástico nos pés do Rivelino. Há quem passe a régua no boteco: coxinha se esgoela pelo time da CBF; esquerdopata é do contra. Juízo, torcida brasileira, como prega o amigo Vladir Lemos no programa Cartão Verde, na TV Cultura. Conheço esquerdistas mais vermelhos do que Lênin dispostos a torcer pelo escrete canarinho – "afinal de contas a velha URSS e sua gloriosa camisa CCCP já eram”, fazem troça da história.
O jornalista Juca Kfouri tem um texto antológico sobre o assunto. Ninguém conseguiu resumir com sabedoria e elegância, e em apenas 30 linhas, a parada. O argumento foi publicado em 05 de junho de 2014, na Folha de S. Paulo, sob o título shakespereano “Torcer ou não torcer”. Jovens, ao Google. Antes, porém, deixo uma amostra grátis do breve tratado:
“Então, dizia nossa esquerda, cada gol da seleção atrasa em dez anos a revolução brasileira. Militante da ALN, a Ação Libertadora Nacional de Carlos Marighella, o que meus colegas desconheciam, passei a ser visto como alienado e sustentei discussões para mostrar que não permitiria que a ditadura roubasse o que eu tinha de mais íntimo, que minha paixão pelo futebol ou minha emoção sempre que ouvia o hino nacional não seriam usurpadas pelos que haviam assaltado o poder.”
Há quem torça de camisa da CBF, mesmo que pirata, e há quem adote a indumentária alternativa do “Lula Livre”, vermelha como a semente do pau-brasil, sopra um colega de trabalho, corintianíssimo como o ex-presidente.
O corvo Edgar, meu bicho de estimação, o maior agourento do futebol, seca explicitamente o time canarinho desde 2006. “Não tem acordo patriótico”, crocita o maldito, “esse Neymar virou um tremendo mascarado”. Tento domar a criatura no poleiro. Ele segue na mandinga, no escárnio e na blasfêmia. Nem o competente professor Tite, capaz de levar na lábia até a madre superiora, o comove. Que fazer? Vou convocar a dona Lúcia, a crédula e cândida brasileira que consolou Parreira e Felipão em 2014, para administrar gotas de otimismo a este cético miserável.
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