Acendi o cigarro de um bebum e fui pensar naquele provérbio supostamente africano. Nem sempre era assim. Conhecia certos velhotes que, mesmo bem medidos e apurados, não dariam mais que um montinho de folhas secas, de esterco de frango, de absorventes ensanguentados a arderem em chamas no quintal. Homens são incendiários. Tem gente que toca fogo em tudo, vocês sabem. Eu não. Eu preferia inflamar as discussões.
Por exemplo: há poucos dias, fui convidado para um almoço familiar numa cidadezinha interiorana, e que foi deveras indigesto para alguns presentes. Pra mim foi quase tudo hilário. Enquanto eu digladiava com uma chuleta que mais parecia ter morrido de tétano, três irmãos sexagenários ligeiramente entorpecidos com cerveja confidenciaram-me que não cumprimentariam, muitos menos, conversariam com um caquético velhote que sorria com cara de paisagem do seu moderno catre sobre duas rodas, como se não beirasse os mil anos de idade, como se ainda possuísse dentes originais para mastigar tanta carne de pescoço, como se pudesse tirar outras modalidades de proveito de uma estupenda cuidadora, uma morenaça cor-de-picanha-bem-passada que me fez viajar na maionese ao ponto de me iludir “nunca vou ficar velho”.
A história foi a seguinte: era uma vez, num passado bem longínquo, quando aqueles três senhores ainda eram moleques e urinavam nas calças, o sujeito aplicou um grave golpe financeiro ao pai deles, seu legítimo irmão. Portanto, o homem senil e fofinho na cadeira de rodas era tio do triunvirato ébrio. Nos bons tempos da juventude, do vigor e da intrepidez, o salafrário idoso — que mal conseguia levar à boca os picadinhos de bisteca clandestina que o manteriam vivo por mais uma tarde — fugiu, sumiu com uma mala de dinheiro angariado às custas de mentira e traição, pois vendera a serraria do irmão como se fosse propriedade sua. Não era.
Eu sei que o crime não compensa, mas, aquela morena valia o risco. Embora devaneasse sob efeito da cerveja choca, eu não podia negar: a língua de vaca estava mesmo uma delícia. Apesar disso, senti uma vontade danada de ver o velhote morrer à míngua durante o banquete. A minha proposta aos três irmãos era clara, absurda, e fez com que eles rissem mais que um deputado federal comemorando um conluio: que levantássemos os quatro e fossemos tirar satisfações quanto à tramoia engendrada pelo tio malandro no século passado, uma baita mazela que vinha entalada na garganta da memória tinha bem uns cinquenta anos. Aquele enredo, para mim, significava quase nada, senão outro exemplo de como os seres humanos eram tão confiáveis quanto um abalo sísmico.
Apesar das condições físicas deploráveis, o velhote me parecia cínico à beça. Beber — vocês podem imaginar — deixa a gente mais besta que o usual. Cismei de me divertir com a situação: estumei a trinca de irmãos com vara curta. Sugeri que confiscássemos a peixeira do garçom passador de carnes, a fim de passarmos o entrevero a limpo, de convencermos o velhaco a assinar um cheque em branco e se retratar aos descendentes.
Pensei, mas não tive coragem suficiente para propor o seguinte atentado ao cadeirante-gracinha: enfiaríamos, deliberadamente, um caroço de azeitona no buraco da traqueostomia ou grampearíamos a mangueirinha da sonda vesical, até que o malandro-na-melhor-idade explodisse, senão com gás carbônico, intumescido de urina. Observem: assim como a chuleta, a vingança era um prato que se comia frio. Além do mais, eu já me encontrava lamentavelmente embriagado, ao ponto das meias-verdades escapulirem latindo da focinheira mental.
Embora concordássemos que os canalhas também envelheciam, ninguém ali naquele humilde e precário estabelecimento gastronômico estava revoltado o bastante, ao ponto de se comprometer a estragar uma festa que visava ao congraçamento de parentes esparramados pelo Brasil, e que há tempos não se viam. “Vocês não queriam confraternizar? Agora, aguenta, cambada…” — provoquei.
Foi dizer essas palavras, o velhinho apagou, capotou, pendeu o corpo para o lado, sofreu uma espécie de síncope, de colapso natural de quem já viveu pra cacete, e teve que ser retirado às pressas do salão, para morrer que nem passarinho no lotado estacionamento da churrascaria. Senti um vazio tão grande no peito que mandei descer outra cerveja.
Não me queiram mal. Eu sou apenas o escritor a tocar um pouco mais de fogo no pavio dos seus olhos.
Fonte: http://www.revistabula.com/4280-cada-velho-que-morre-e-uma-biblioteca-que-se-incendeia/
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