Nelson Jobim é uma figura raríssima no país. Conhece por dentro os Três Poderes porque teve passagens expressivas por todos eles. Indicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ficou nove anos no STF (Supremo Tribunal Federal) e chegou a presidi-lo. Em sua opinião a corte máxima da justiça brasileira falhou ao não conter excessos da Lava Jato no início da operação.
Os diálogos revelados pelo "The Intercept Brasil" comprovam, na avaliação de Jobim, que a operação cometeu abusos e que o ministro da Justiça, Sergio Moro, teve uma conduta inadequada como juiz federal no Paraná.
Antes de chegar ao Supremo, Jobim, que é advogado, teve participação relevante como deputado federal pelo PMDB (hoje MDB) na elaboração da Constituição de 1988 e foi ministro da Justiça no governo FHC. Depois da passagem pelo Judiciário, foi ministro da Defesa nos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (PT).
Para ele, os processos da Lava Jato contra Lula "são controversos em termos de prova". O ex-presidente do STF diz acreditar na inocência do petista. Por outro lado, seu trânsito nas Forças Armadas o faz dizer que os militares ficaram ressentidos com setores do PT por causa do trabalho da Comissão da Verdade durante o governo Dilma.
Aos 73 anos, o gaúcho de Santa Maria vem de uma família de políticos conservadores e é homem de diálogo. Continua filiado ao MDB, mas diz que não volta à política. Atualmente, é sócio do banco BTG Pactual, onde entrou como diretor para reorganizar a área de compliance -- ferramenta de governança corporativa para que uma empresa cumpra regras internas e a legislação -- da instituição financeira.
Confira abaixo os principais trechos de sua entrevista ao UOL em que ele também comenta o governo Jair Bolsonaro (PSL).
UOL - Onde o ex-presidente Lula errou para ser alvo de tantos processos e ser condenado?
Nelson Jobim - Os processos dele são controversos em termos de prova. Eu, particularmente, não creio que ele tenha participado efetivamente dessas coisas [casos de corrupção]. Houve uma onda em relação ao problema do PT. E mudou o quadro. Hoje caminhamos para uma posição de centro-direita, de direita.
Eles [o PT] tinham que ter reconhecido os problemas que foram criados. Não reconheceram e acabaram entrando numa fase difícil. Agora tem esses processos todos e essa decisão que tem que ser tomada pelo Supremo Tribunal no segundo semestre, quer em relação ao habeas corpus [em que a defesa pede a anulação do julgamento no caso do apartamento de Guarujá alegando que Sergio Moro atuou com parcialidade] quer em relação ao problema da prisão em segunda instância ou prisão em trânsito em julgado. É possível que ele [Lula] venha a ser beneficiado com isso. Além do mais, ele já tem aquela redução da pena
O fato é que se introduziu na política, no final do governo Dilma, uma variável nova que foi o ódio. A capacidade de diálogo, de entendimento, de construção de soluções acabou sendo inviabilizada por essa situação de ódio e rancor. Você não constrói o futuro retaliando o passado.
O resultado final foi a eleição do presidente Bolsonaro dentro desse vendaval contra a atividade política, a criminalização da política que veio do discurso básico da Lava Jato.
O sr. entende que Sergio Moro foi imparcial ao julgar Lula?
É difícil afirmar. Examinando isto que aparece nessas notícias do Intercept, que ao que tudo indica são corretas e verdadeiras, ele teve uma conduta não adequada para um juiz de direito. Em hipótese alguma, poderia um juiz de direito ter contatos com o Ministério Público ou mesmo com a defesa para orientar procedimentos. Isso não é nada bom.
Seja qual for a solução que se dê para o processo judicial, fica a pecha do envolvimento do juiz no sentido de orientar e comandar a acusação. O que vem a ratificar aquilo que havia interiormente, ou seja, a suspeita de que havia uma grande interação entre o juiz de direito comandando o processo e o Ministério Público, coisa que os advogados de defesa afirmavam há muito tempo.
O habeas corpus que a defesa levou ao STF alegando a parcialidade de Moro vem de antes da revelação dos diálogos do ex-juiz. Como você prova a parcialidade?
Se fica demonstrado claramente de que na base de tudo isso tiveram contatos e relações do juiz julgador com o agente acusador, discutindo estratégias de condução do processo, evidentemente que é parcialidade.
Essas mensagens reveladas podem ser usadas contra Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato? Acho difícil que elas tenham efeitos para trás no sentido de anular processo, mas isto mostra claramente a inconveniência de você criar grupos específicos para operar determinadas áreas porque esses grupos querem se manter sempre. Acaba criando uma necessidade da sobrevivência ou a reprodução da força-tarefa.
Jobim entende que Moro teve conduta inadequada, mas que a anulação de processos é difícil
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O sr. acha que o STF cometeu algum erro em relação à Lava Jato?
No início, foi leniente. Ou seja, tolerou os exageros, os abusos que foram cometidos e agora estão ficando muito claros com essa história do Intercept. Houve casos de erros crassos, que depois acabaram se resolvendo. Agora o tribunal está começando a ter uma posição, digamos, mais garantista.
Todo mundo acha que as correntes garantistas são conservadoras. Todo mundo é contrário ao garantismo desde que a decisão lhe convenha. O dia em que estoura o raio nos pés ele vai adorar um garantista. E a posição do tribunal é ser garantista, garantir os direitos que estão na Constituição.
Lembro, por exemplo, daqueles casos que eram aplaudidos e que eram, digamos, coisa de mídia, das conduções coercitivas. É uma invenção. O sujeito queria ouvir a parte, então mandava conduzir para ser ouvido. E o sujeito não tinha sido intimado nem se negado a ir. Mas aquilo criava um ambiente de pressão psicológica contra o depoente. Porque as conduções coercitivas se davam às 6h, estava toda mídia lá, assistindo àquilo e criando aquele ambiente.
O fato também de o Ministério Público ter aquelas exposições com Power Point das acusações, como se aquilo já estivesse definido, criou um ambiente muito ruim, que agora aos poucos vai se compondo.
O sr. entrou no BTG Pactual depois da Lava Jato [André Esteves, fundador do banco, chegou a ser preso na operação sob a suspeita de comprar o silêncio do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, mas o Ministério Público não encontrou provas para incriminá-lo]? O que o sr. tem feito no banco?
O convite que recebi foi integrar o conselho do banco e ao mesmo tempo fazer uma montagem da questão de compliance do banco. O compliance já existia no banco e funcionava bem. Só que a estrutura era diferente. Alterei a estrutura. O compliance era um braço do departamento jurídico do banco. Então, criei uma diretoria de compliance no mesmo nível da diretoria jurídica e com contato direto com o conselho.
Qual sua avaliação sobre o governo Bolsonaro?
Falta rumo. O governo Bolsonaro tem uma certa de disfuncionalidade.
Tem o núcleo econômico, cujo personagem é o Paulo Guedes. Alguns podem concordar ou discordar, mas é questão de mérito. O fato é que tem uma agenda econômica consistente e tem gente competente junto a ele.
Tem o núcleo militar, que sofreu algumas avarias agora em relação a um personagem que era o Santos Cruz, mas é um grupo consistente, disciplinado. Embora fiquei muito surpreso quando vi a presença do general Heleno nesses movimentos de rua, fazendo discurso, que não é um modelo próprio tendo em vista a origem militar.
O terceiro núcleo é o político, que estava sendo comandando pelo [ministro-chefe da Casa Civil] Onyx Lorenzoni, mas sem organização, sem articulação visível competente. Tanto que agora transfere-se essa função para o general [Luiz Eduardo] Ramos [novo secretário de Governo].
Há um discurso antipolítica, que é vocalizado pelo próprio presidente, com altos e baixos nesse sentido, e que leva a um certo tipo de conflito com o Congresso. O processo de reforma da Previdência está sendo mais conduzido pelo presidente da Câmara e do Senado do que pelo próprio governo.
E por último tem ainda o núcleo da família. Esse é complicado. Principalmente um deles [referência ao vereador do Rio Carlos Bolsonaro] cria o conflito. Então, não há necessidade, por enquanto, de oposição. A oposição está dentro da própria desestruturação do governo.
Para ex-ministro, governo Bolsonaro precisa de rumo e de agenda para combater desemprego
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Creio que não. O próprio Ramos tem condição de manter essa coisa mais estável. Mais radicalizado do que está é impossível. O problema é a eficácia dessa radicalização, o que isso tem de discurso e o que tem de realidade. Algumas das posturas dos ministros da Educação e das Relações Exteriores são caricatas.
O que o sr. espera do governo na economia?
As pessoas podem não gostar do presidente, mas Bolsonaro foi eleito. Em política tem uma regra: você não escolhe interlocutor. O interlocutor é o que está aí. E o país precisa enfrentar as suas questões com esse governo que está aí e com os governos estaduais que estão aí.
Creio que a reforma da Previdência acaba sendo aprovada, mas o problema é que ela é uma solução de longo prazo. É um sinal de que a situação fiscal vai melhorar. Não significa que você tenha um deslanche da economia desde logo.
É preciso que o governo, junto com a Câmara e o Senado, possa montar uma agenda econômica de curto e médio prazo. Fala-se que o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem lá algumas coisas para o pós-Previdência. Precisa ter algo depois da Previdência. Precisa ter algumas medidas de curto prazo que resolvam o crescimento econômico para resolver o problema do desemprego. Você não pode ficar muito tempo com 13 milhões de pessoas por muito tempo desempregadas. Isso é um vulcão.
Seria necessário que houvesse uma lucidez política, não só dentro do governo, mas também no Congresso porque o partido do governo é muito errático, o apoio do governo no Congresso é errático.
Militares dizem que ficaram insatisfeitos com a forma como o governo da ex-presidente Dilma conduziu a Comissão de Verdade [que tratou de crimes cometidos durante a ditadura militar]. Qual foi erro de Dilma?
O grande conflito que tinha, e participei disso fortemente porque era ministro da Defesa do Lula, era que o grande discurso para alguns setores do governo era a revisão da lei da Anistia [de 1979]. Eu disse o seguinte: "essa lei não tem como mexer mais, esse assunto é encerrado". Teve um pacto político na época com o governo [do general João] Figueiredo. O PMDB, na época, participou desse pacto. Acertaram isso de que a anistia era bilateral, ou seja, abrangia os militares e todos.
Como a eventual revisão da lei da Anistia foi tentada no Supremo -- entraram com ação para julgar a inconstitucionalidade da lei da Anistia e perderam --, aí tentou-se a revisão da lei da Anistia de forma indireta, via a criação da Comissão da Verdade.
Resolveu-se fazer a Comissão da Verdade para tentar trazer notícias em relação aos militares, mas não trazer notícias em relação aos atos que teriam sido praticados pela oposição à época.
Começou a parcialidade. E essa parcialidade ficou mais clara ainda quando houve o relatório final da Comissão da Verdade. Aí exageraram, entrou um delírio. Eles resolveram colocar o brigadeiro Eduardo Gomes como torturador. O argumento era: "ele era o ministro da Aeronáutica, a Aeronáutica praticou torturas, logo ele era torturador".
Curiosamente, é o mesmo discurso que foi feito no caso do Lula: "houve corrupção na Petrobras, Lula era o presidente, logo ele também estava anuindo com a corrupção". O raciocínio é o mesmo.
Comissão da Verdade deixou militares ressentidos com setores do PT, afirma ex-ministro da Defesa
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Que sentimento as Forças Armadas passaram a ter em relação ao PT?
O sentimento é que eles estavam tentando fazer uma retaliação do passado. O Lula era contra, não queria saber com essa história de mexer com lei de Anistia. Ela achava que coçar ferida não cicatriza. Era inclusive a linguagem que ele usava.
Na época, segurei esses ímpetos que vinham do setor de direitos humanos do governo Lula, com o apoio do presidente, mas ficava aquela desconfiança. Os militares sabiam que houve um acordo político com a lei da Anistia, que o assunto estava encerrado. Aí vinham exemplos internacionais, criou-se um discurso de direito de transição política.Isso criou um ressentimento. Mas não um ressentimento em relação ao presidente Lula, se respeitava muito o presidente, mas [em relação] àqueles setores específicos que estavam tentando fazer esse discurso. Coisa que ficou superada depois. Hoje não tem mais nada.
Foi superado?
Foi superado.
O sr. continua filiado ao MDB. Pretende voltar à política?
Não, estou com 73 anos. Passou.
Como partidos mais antigos poderiam recuperar a credibilidade junto à população?
Só alterando o sistema eleitoral porque os partidos antigos estão mortos. Partidos mais novos vão ter que se consolidar. O PSL não é um partido no sentido de ter um programa.
Em uma reforma política mais profunda, que mudança o sr. considera importante?
Sou favorável ao sistema distrital misto [em eleições proporcionais, como as de deputados federais, parte das vagas fica com os mais votados em cada região, a outra parte é preenchida pelos partidos mais votados] porque no modelo atual quem pode me prejudicar numa eleição não é o candidato do outro partido, é o candidato do meu partido. Eu disputo a vaga com o candidato do meu partido. Então você não tem consistência partidária nenhuma, você tem individualidades.
Com isso você atende um problema que é a redução do custo da campanha eleitoral. Se você reduzir o distrito eleitoral, você dá maior proximidade desses candidatos aos eleitores e reduz o ímpeto da despesa.
O sr. teve participação reconhecida na elaboração da Constituição de 1988, mas ela é alvo de críticas, principalmente por parte da direita, que fala em excesso de direitos. O que o sr. pensa sobre essas críticas?
A Constituição é correta. Ali tu tens um rol de direitos e garantias individuais, absolutamente moderno, que funciona. Você tem um desenho institucional importante. O que você não tinha em 1988 era a capacidade da construção de uma modernidade econômica. Tu estavas em um período com desconfiança do Poder Executivo. Com isso, se fortaleceu o Congresso. O problema na ordem econômica é que quando se votou a Constituição ainda havia aquela visão antiga. Então, acabou sendo um modelo estatizante, claramente estatizante, o que veio a ser reformado com o Fernando Henrique em 1995 [com as privatizações]
Do UOL, em São Paulo
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